Um dia durante a sua folga de 15 minutos para o almoço, Papagaio pegara o celular e vira em um dos tantos aplicativos de vídeos de 30 segundos, um homem que correra para o meio da rua e levantou nos braços uma garotinha, no último instante antes que ela fosse atropelada por um carro que passava em alta velocidade.
Aquele vídeo, mudaria sua vida para sempre!
Ele entendeu que o homem do vídeo era um herói. Então, olhou para si mesmo, aos 26 anos, e decidiu que seria também um herói. Ele trabalhava como “segurança e anunciante de ofertas” de uma pequena loja de apelo popular bem na esquina de uma movimentadíssima BR que cortava a cidade de Ananindeua na região metropolitana de Belém, com uma das principais ruas de acesso à cidade. A rua em que havia o comércio, o Mercado Público, o Fórum da Justiça Estadual, o Fórum da Justiça trabalhista e alguns bancos. E a alguns metros, havia a passarela, sobre a BR, que despejava, minuto a minuto, um sem número de transeuntes andando sempre com pressa, sempre inevitavelmente atrasados para seja lá o que fosse. A esquina era definitivamente movimentada, para onde convergiam vários ônibus e um sem número de carros e motos.
Seu trabalho consistia em ficar vigiando se alguém tentava pegar alguma das roupas que ficavam em grandes balaios, na frente da loja, já invadindo a calçada, ao mesmo tempo em que segurava um microfone e anunciava as ofertas, contribuindo para a cacofonia urbana, que faz parte da rotina dessas aglomerações.
Quando terminou o almoço, voltou para a frente da loja, pegou o microfone, mas ficou em silêncio. Observando.
— Ei Papagaio, bora lá, mano, anuncia as ofertas aí! — Gritou-lhe o jovem gerente.
— Eu vou ser herói, Seu Pantoja! — respondeu Papagaio.
— Vais ser é desempregado! Se não começares a trabalhar, vais levar farelo!
O fato é que dia após dia, Papagaio passou a anunciar menos, a vigiar menos a loja, e a prestar muito mais atenção à esquina. Tinha certeza que a qualquer momento, alguém estaria a ponto de ser atropelado. Então, ele sairia correndo e, no último instante, salvaria a pessoa aos olhares de todos. Ele seria um herói. Era seu destino, e sabia disso.
Cada vez mais disperso, acabou por ser demitido.
Em seu íntimo, não ficou chateado. Queria poder dedicar toda sua atenção ao tráfego naquela esquiva, queria estar alerta no exato momento em que aconteceria a sua ação heróica! Já imaginava, em todos os aplicativos, o vídeo viralizando: “Herói Papagaio salva pedestre da morte certa!”. Era seu destino! Era o seu destino!
Sem o emprego, dedicando-se exclusivamente ao tráfego, começou a chegar mais tarde em casa. E saía mais cedo de casa. Muito mais cedo. E então, Zenaide abandonou-o! Não, ela não saiu de casa: simplesmente, não foi mais atrás dele, na esquina, chamar-lhe para jantar, para tomar banho. Não lhe levava mais a merenda, nem o fazia trocar de roupa.
Papagaio não se importava!
Usava o banheiro do Mercado Público, que funcionava ininterruptamente. Os antigos colegas do trabalho, sempre dividiam com ele, porções de suas marmitas. O generoso clima do Norte, permitia que as temperaturas nunca o maltratassem pela falta de roupas quentes. Acostumou-se a pequenos cochilos, em vez de um longo sono, e sempre o fazia em frente à porta da loja onde um dia trabalhara. Com o tempo, passou a conhecer as rotinas de quase todas as centenas, milhares de pessoas que passavam naquela esquina. E tornou-se conhecido, também.
Sabia que nas quintas-feiras, antes de 7 horas, D. Jandira fazia compras no Mercado Público, e saía de lá, tentando levar duas sacolas pesadas demais para seus 78 anos. Então, ele a ajudava a carregar as compras pelos quase dois quilômetros até sua casa. Descobriu que uma vez por mês, Jacinto, paraplégico, descia do ônibus com muita dificuldade, tendo de aceitar a expressão mal humorada do motorista, por ter que parar o ônibus e ir por fora, para ajudar a tira-lo com a cadeira de rodas, o que sempre atrasava o horário já tão apertado, para completar a volta na linha. Uma vez por mês, então, Papagaio empurrava Jacinto até a lotérica, tendo de vencer três degraus sem qualquer acessibilidade para cadeirantes, onde recebia o reduzido benefício do governo. E Papagaio praticamente impedia a passagem dos ônibus, forçando-os a parar contra a vontade, para receber Jacinto em sua cadeira de rodas, em seu retorno.
Uma vez por semana, ajudava D. Soraya a levar seu filho, Abelardo, que tinha esquizofrenia, pela passarela, para vir do bairro do outro lado da BR até o Crás, quase 1dois quilômetros adiante, para que fosse atendido e pudesse receber a receita e os remédios, os quais dificilmente tinha dinheiro para comprar.
Os anos foram passando… e a oportunidade de Papagaio não aparecia. A ordem natural da vida levou, ao longo dos anos, D. Jandira, mas vieram outras, às quais ele ajudava. Levaram Jacintos, Soraias, Abelardos… que eram substituídos por pessoas diferentes, e vidas iguais. Até que um dia, fora a vez de papagaio, já velho, já sem sequer saber a conta de seus anos, já sem sequer lembrar o nome com que fora batizado…
Enfermeiros do Posto de Saúde que ficava ao lado do Mercado Público, acorreram, quando S. Pantoja, o então velho gerente da loja, não conseguiu levantar Papagaio, para abrir as portas ao expediente do dia. Uma pequena multidão reuniu-se, e alguns ouviram as últimas palavras de Papagaio:
— Eu só queria ter sido um herói.
O caixão fora simples, mas doado de boa vontade. Um vereador conseguiu um túmulo em um bonito lugar no cemitério municipal. Houve muitas flores, das tantas pessoas que não eram anônimas para Papagaio, e isso, para elas, fez diferença durante a vida. Os trabalhadores do Mercado Público arrecadaram dinheiro, e doaram a lápide.
Papagaio viveu a vida, buscando um grande ato de heroísmo… e não percebeu, que a soma de seus constantes atos de gentileza, o acúmulo de seus pequenos gestos diários, tornaram-no maior do que o ato que buscara. Na sua lápide, em que não estava seu nome, porque já nem sequer o sabiam, em que não constava a data de nascimento da qual não se tinha idéia, fizeram escrever:
“Aqui, descansa Papagaio, o herói”.
Luís Augusto Menna Barreto
4 de setembro de 2022.