segunda-feira, 31 de outubro de 2016

diálogos - "...sementes!"

Diálogos: “…sementes!”

Originalmente  publicado no antigo blog
"Menna Comentários", precursor deste.
Data da postagem original: 18.04.2016.
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… por que dói tanto? Ele se foi mas o amor não partiu junto. Se ele me deixou, por que o amor não foi embora junto?"

“Tu não entendes, não é? O amor é uma planta, por isso não foi embora.”

Como assim?” Ela havia entendido… mas precisava continuar naquele abraço que a fazia sentir-se protegida pelo melhor amigo.

“Ele plantou o amor no teu coração. O amor nunca vai embora. Nunca. Ele fica ali. Cairão as pétalas, perderá a beleza… secará… mas ficará ali… plantado… até morrer.”

Eu sei…” Ela disse sem secar as lágrimas, sem tirar o rosto do ombro dele. “… mas eu tenho medo”.

Ele deixou o silêncio perguntar do quê ela tinha medo.

… medo que tenham ficado sementes…


Por Luís Augusto Menna Barreto



domingo, 30 de outubro de 2016

pensamentos perdidos - AS FLORES - parte 13 de 15

Pensamentos Perdidos: AS FLORES - parte 13 de 15

Carta de Henrique
Há um vento fraco lá fora… Posso ver como as árvores são agitadas por ele… Posso ver como todos os corpos são tocados pelo vento que hora é brisa, hora é tufão… 
Há vento… lá fora!
Não sei se tenho tempo. Preciso terminar esta carta antes que o vento que há lá fora enfraqueça e pare… e, há tempos, eu não consegui entender direito quando os ventos param ou começam…
Estou confuso, Júlia…
Vejo as imagens de minha infância, de uma juventude que não percebi, da maturidade que se escondeu e dos dias em que me vi morrer lentamente através do espelho que insistia em tornar-me velho. Penso na vida e na morte e não consigo, agora, separá-las. Não sei até onde vivi e nem quando comecei a morrer. Não sei nem ao menos se tudo o que passei foi vida… Contudo, não consigo encontrar a alegria de um renascer e, então, percebo que sinto medo de algo que nem sei se conheço…
Lembranças que nunca tive, de minha infância, chegam com clareza em minha mente. Vejo-me correndo em lugares que esqueci, subindo em árvores que foram meus castelos, brincando com bolitas… lembro-me de ter sorrido. Percebo, agora, que minha infância ficou esquecida junto com o saco de bolitas que deixei quando te conheci, Viviane. E lembro daquele dia de vento em que acreditei que a vida poderia ser bela. Naqueles momentos de vento, tenho a certeza de ter conquistado um pedaço de um paraíso qualquer, d’onde fui expulso assim que acordei, solitário, como uma folha que o vento arrancou de sua árvore da infância para deixar atirada sem rumo em um lugar a esmo…
Passei, então, a procurar-te em todas as flores que se curvavam, em todos os galhos que se balançavam em um brisa qualquer… Fiquei a desejar que todos os dias fossem dias de sol para que eu saísse a procurar por uma sombra que ficasse ao lado da minha. Se não lembro de amigos na infância, da mesma forma lembro apenas da solidão da maturidade em que te procurei em vão em todas as Manoelas, Anas e Marias que pude encontrar… e, em nenhuma, encontrei o vento ou o aroma que vinha do teu corpo.
Eu te senti perto cada vez que sentia teu cheiro antes de ventos que, mais do que plantas, destruíam meu coração. Encontrei-te, então, nas lembranças que não tenho, nos momentos que não vivi, nos lugares que nem me lembro… Perdi-me em sonhos de castelos em que não fui rei solitário e, cada vez, rezava para não ter que acordar.
O tempo passou e trouxe calo às minhas mãos, peso às minhas pernas e tornou tenra a fibra que, por ti, foi dura pela primeira vez. Encontrei minha infância revivida em meninos que corriam pelas ruas, encontrei-me, estranho, em um espelho que mostrou um velho e, então, notei das as dores que sentia sem saber e a visão que não me permitia mais saber o que diziam os livros que antes eu lia.
Vejo o vento passando lá fora e vejo-o como a minha vida. Chego até aqui e não sei quando comecei a viver. Não sei nem ao menos se houve começo. Sim, sinto minha vida como um vento. Um vento que começou e não notei, que soprou sem ser percebido e que chega ao fim sem saber até onde deveria ter chegado…
Passei a minha vida a procurar-te, Elaine, e esqueci-me de viver. Sinto, agora, todas as forças querendo abandonar meu corpo - que já teve força - e noto que sempre pensei que recordaria minha vida antes da morte.
Escrevo, Helena, para dizer-te que não sei ao certo o que é amor. Mas, certamente, eu te amei.
Vou ao teu encontro, Fernanda… Vou ao teu encontro…

Por Luís Augusto Menna Barreto















sábado, 29 de outubro de 2016

poesia de ver - "...espalhadas!"

Poesia de Ver: “… espalhadas!"

Originalmente  publicado no antigo blog
"Menna Comentários", precursor deste.
Data da postagem original: 13.04.2016.
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“Que pena as flores espalhadas no caminho”, eu te disse quando passamos ali.

“Se for para ficar pelo caminho, que sejam flores”, tu me respondeste.

Como é bom caminhar contigo…! 


Imagem e texto por Luís Augusto Menna Barreto




quarta-feira, 26 de outubro de 2016

crônica - O Presidente, o Manobra e a Ambulância (parte 1)

O Presidente, o Manobra e a Ambulância (parte 1)

Originalmente  publicado no antigo blog
"Menna Comentários", precursor deste.
Data da postagem original: 03.05.2016.
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Começou com o telefonema:
“… então, Dr., o senhor providencia o carro da comarca para buscar o Presidente no aeroporto?!”
“Hein?”
“O carro da comarca, Dr. O presidente deve chegar aí em Curralinho por volta de 9 horas.”
“Hein?”
O servidor do cerimonial do Tribunal de Justiça pensou que estava ruim a ligação. Estava! Mas eu entendia as palavras. Apenas ainda não sabia dizer de um jeito bom, o que era pra dizer. Então falei do jeito que sei:
“Não tem carro, aqui.”
“Ah, Dr., então o senhor alugue um carro bom por aí, quem sabe um taxi um pouco maior…”
“Não, o senhor não está entendendo: não tem carro na cidade!”
“……..” Silêncio do outro lado da linha. Eu estava achando divertido, mas ajudei o homem que certamente não estava acostumado com a realidade do Marajó:
“……” Silêncio. Então continuei:
“Primeiro: não tem “aeroporto”. O que tem é uma pista de piçarra, pequena, que desce só monomotor! Fica lá na estrada, uns cinco quilômetros da sede da cidade.”
“ok, Dr., o senhor avise lá na pista…”
“Clandestina!”, interrompi logo, pra deixar tudo claro.
Daí pra diante, foi um festival de gaguejadas do homem.
O Presidente do Tribunal de Justiça havia assumido com a promessa de que interligaria todas as comarcas do Estado pela internet e que visitaria todas as comarcas. E estava cumprindo!
“Dr., (engasga, engole, pigarreia), o senhor providencia, então, o carro?” Ele não desistia, pensei!
“Seguinte: ou o Presidente vem da pista em um mototáxi sem habilitação, sem capacete, usando chinelo de dedos, em uma motocicleta sem placa; ou curte uma de “bóia-fria” e vem na caçamba do caminhão de lixo; ou dá uma de doente e vem de ambulância!"
“…………….. (silêncio… hesitação)… bem… veja aí como for melhor, Dr.!" E desligou!
Olhei o calendário. Seria sábado. Sábado?! Mais essa: minha rotina era chegar na cidade na segunda e sair da cidade na sexta à noite, sempre de navio. O navio vem da cidade de Breves, de onde sai às 18 horas, passa em Curralinho por volta das 22 horas e, depois, chega em Belém por volta de 6h da manhã. Nessa rotina, eu levava minhas roupas contadas para usar em Curralinho! E paletó, meu Deus? Eu só tinha um em Curralinho, porque nunca fui muito dado a fazer audiências de paletó, e foi justamente naquela semana que eu havia derramado café na calça do paletó. Cheguei a pensar em receber o presidente sentado na minha mesa o tempo todo, usando outra calça e a parte de cima do paletó… … tá bem!, óbvio que não daria certo! 
Receberia o Presidente de calça jeans e camisa polo, mesmo!
Quanto ao transporte, decidi pela ambulância. Fui no hospital falar com a administradora. Expliquei a situação e ela não teve dúvida! Fez o que se espera: não resolveu!
“Ah, doutor, tenho que falar com o Secretário de Saúde…”
Vi o rumo que a conversa tomaria, com muita desculpa e nada resolvido, e levantei-me:
“Obrigado. Pode deixar que eu falo com ele”. 
Fui na Secretaria de Saúde e não o encontrei. 
“Não chegou ainda, doutor…”, disse-me a Nevinha, que atendia ali com cara de sono.
Fui na casa dele, não estava. Voltando pro fórum, passei no bar do Seu Nonô… … estava lá. Expliquei a situação e então, sim… não deu em nada:
“Ah, doutor, tenho que falar com o Prefeito…”
“Obrigado, deixa que eu falo com ele”.
Mas, desta vez, em vez de ficar andando pela cidade, perguntei para quem sabia da vida de todo mundo: 
“Onde encontro o prefeito, seu Nonô?”
“Doutor, se não tiver no açougue essa hora, o senhor encontra o prefeito em casa ou então, não está mais na cidade”.
O açougue era um local onde havia as carnes penduradas em ganchos, sem nenhuma acomodação refrigerada, uma mesa de bilhar e ponto de reunião de várias pessoas, onde o açougueiro era também o dono do jogo do bicho (dizem!) e pagava os prêmios em carne. Ah, claro, vendia uma ou outra cervejinha…
“Fala, Retalho (o apelido do açougueiro), sabes do prefeito?”
“Quinta-feira, doutor… já tá em Belém”.
“Poxa… tô precisando da ambulância para buscar o presidente do Tribunal de Justiça na pista…”
“Ai, meu Deus! O homem tá aqui? Acha melhor eu fechar doutor? Porque jogo não pode né?”
“Calma Retalho… vai vir no sábado. Tô tentando a ambulância para buscar ele na pista, mas preciso falar com o Prefeito para liberar a ambulância…”
“Ah, doutor, deixa comigo! Que horas o senhor precisa?”
“Hein?” Olhei pra trás e um rapaz franzino, com um copo de cerveja na mão, (às 10h da manhã!!) levantou-se e veio na minha direção.
“É só marcar o horário e eu tô lá, doutor”. Estendeu a mão molhada do copo suado de cerveja. Apertei a mão, desconfiado e olhei para o Retalho, como quem diz: 'e quem é esse, Retalho?’
“Pois está, resolvido, doutor”, falou o Retalho. “Esse é o Manobra, o motorista da ambulância!”
Pois é! Nem administradora do hospital, nem Secretário de Saúde, nem Prefeito! Resolvi foi direto com o Manobra!
… 
E foi lindo de se ver! No sábado, desceu aquele avião grande demais pra pista! Veio direto e deu uma pancada no solo, que achei que fosse se espatifar todo! Meses e anos depois, ainda damos risada de tudo, mas, na hora, foi tenso!
De qualquer forma, estava tranqüilo: estávamos de ambulância e comigo estava quem resolvia: o Manobra!

Por Luís Augusto Menna Barreto






segunda-feira, 24 de outubro de 2016

diálogos - "...abandonos!"

Diálogos: “… abandonos!"

Mas tu disseste que não desistirias de mim.

“Disse que não desistiria facilmente… mas não posso insistir pra sempre.”

Eu voltei”, ele dizia com alguma súplica nos olhos. “Insistes mais um pouco.

“Se tu soubesses como dói esperar…”

Às vezes, dói mais não poder voltar quando se quer… porque além da saudade, fica a culpa de fazer-te chorar…

Por Luís Augusto Menna Barreto




domingo, 23 de outubro de 2016

pensamentos perdidos - AS FLORES - parte 12 de 15

Pensamentos Perdidos - AS FLORES - parte 12 de 15

Lembranças de Henrique
O vento deixou-me confuso, Verônica. Eu lembro que não conseguia nem ao menos pensar e não sei quando foi a última vez que tentei avistar a árvore onde eu havia deixado as bolitas.
Eu olhei para todos os lados e só vi plantas sendo levadas por aquele vento incrível que nos lançava em uma direção da qual não havia mais como fugir. O vento jogou-me ao teu lado e, de repente, levou minha mão ao teu corpo. Estávamos entregues àquela força enorme que nos empurrava e fazia com que eu não conseguisse mais me separar de ti, mesmo com todas as minhas tentativas de resistência. O sol brilhou mais uma vez e vi somente uma sombra no chão. Eu te senti envolta em meus braços e, então, percebi todo o teu corpo. Senti-me estranho… Algo ardia dentro de mim no meio daquele vendaval que nos mantinha unidos. Lembro de sentir teu corpo, lembro de um vento quente que fazia brotar gotas de suor em teu peito, de uma sede sufocante que fazia com que eu procurasse cada gota com meus lábios e, depois, levasse até os teus, para que também tu saciasses a tua sede. Senti uma vontade enorme de alcançar alguma coisa que eu não sabia o que era, lembro de ter gemido de uma dor que não era dor, de escutar teus suspiros na mesma ânsia que me consumia em meio à confusão do mundo ao nosso redor, entregue, como nós, ao vendaval que revelava e escondia e indicava o único caminho que existe…
Éramos, Vanessa, apenas uma folha que o vento indicava o rumo. Acreditei, então, que a vida era bela e, ao mesmo tempo, compreendi que a morte deveria ser em um momento assim para que uma vida inteira não perdesse o sentido nos últimos minutos em que, creio eu, pensamos se algo valeu a pena… A morte em um momento assim, certamente distanciar-me-ia da covardia que me faz duvidar que a lágrima por algo de bom ter acabado seja mais difícil do que o sorriso por algo de bom ter acontecido…
Então, gritei. E ouvi teu grito também… E lembro que a última coisa que vi em meio ao espetacular tufão, foi teu sorriso dizendo algo que não entendi naquele instante. Depois, lembro apenas dos sonhos de meu adormecer. 
Estão vivas, porém, em minha memória, as imagens de meu despertar solitário. A imagem das folhas espalhadas no chão. Mortas, inertes, sem o brilho de vida que o vendaval havia concedido. Folhas como eu, só, sem saber o que fazer. Sem saber onde estava. Folhas que ficaram a escutar o silêncio de um mundo… à espera de um novo rumo… à espera de um novo vendaval…
Por Luís Augusto Menna Barreto



















sábado, 22 de outubro de 2016

crônica - Goela, Afrodite e o Exame

Crônica - Goela, Afrodite e o Exame

Foi impossível não notar quando o Goela chegou no fórum: eram dois traços paralelos , em diagonal no rosto do Goela. 
“Isso não é nada doutor”, e levantou a camisa e e havia várias marcas semelhantes, às vezes com três ou quatro traços! Arranhões fundos.
“Tudo culpa sua, doutor!”
“Hein?”
O dia anterior do Goela havia sido um dia daqueles:
“… tu tens que ir lá, Goela, pelamordiDeus! Só tu pode resolver isso, vai lá!”
O Goela nem bem tinha acordado ainda. Estava espremendo os olhos nos primeiros raios de sol, em algum horário que ele estimava que fosse por volta de 8 horas da manhã, mas ele não tinha como saber muito bem, desde que a Afrodite, dois dias atrás, quebrou o celular dele quando ele esqueceu sem senha e apareceu uma mensagem que a Afrodite achou que fosse de alguma “piriguete”, que era como ela chamava todas as outras que por acaso olhassem para o Goela. Ele nem conseguiu argumentar nada, porque soube da mensagem no exato momento em que o telefone estava voando em direção a sua cabeça. A Afrodite, esposa dele, jogou o celular na direção da cabeça do Goela que conseguiu abaixar a tempo e ouvir o celular espatifar na parede. Daí, que desde então, o Goela não sabe mais as horas direito.
Se de tudo se pode tirar um lado bom, essa é a desculpa para ele chegar com algum atraso no fórum.
No dia anterior olhei pra ele, cumprimentando-o como sempre faço e, sem que eu perguntasse ele foi falando:
“Foi a Afrodite, doutor. Ela quebrou meu celular!” E levantou os ombros como quem diz “a culpa não é minha”. 
Mas a verdade é que com ou sem celular, o Goela sempre chegou atrasado, por volta de 8h e 20min! 
Pois ele estava saindo de casa e a Milagres já puxou a manga do Goela:
“… tu tens que ir lá, Goela, pelamordiDeus! Só tu pode resolver isso, vai lá!”
O Merece, filho da Milagres, havia sido preso… de novo! Por briga… de novo!
“Tá doida, Milagres, que eu vou lá?! Tu já não pediste pro Ruela ir?”
Ruela era o filho mais velho da Milagres. Merece, o mais novo. Entre os dois havia outros cinco!
Houve uma briga no campo de futebol, durante o campeonato da cidade… daí, o Merece, que sempre foi esquentado, foi um dos que puxou a briga. A PM fez o de sempre: presente com todo o efetivo do dia (dois homens), ficaram só olhando. Viram quem começou e esperaram… quando os brigões começaram a cansar, eles entraram com o cacetete na mão e pronto! O pessoal mais esperto saiu correndo. Eles vão direto em quem começa a briga e recolhem!
Daí que o Merece tá preso.
Quando chegou a notícia, à noitinha, para a Milagres, ela quase desmaiou, subiu a pressão, tiveram que abanar, dar água com açúcar, essas coisas… foi então que a Milagres mandou o Ruela, filho mais velho, à noite mesmo, na delegacia, ver se fazia alguma coisa.
Quando o Ruela chegou lá, o delegado não estava. Estava só o Brédi-Piti que é um preso que toma conta da delegacia quando tá respondendo algum processo, e o Tonelada, um dos policiais que prenderam o Merece. Como o carcereiro Fechadura havia saído pra jantar e o delegado não estava na cidade, o Tonelada resolveu ficar ali, esperando porque sempre desconfia do Brédi-Piti. Para o Tonelada, se é preso, tinha que estar trancado na cela. Não confia em preso cuidando de preso!
Quando o Ruela chegou, pediu pra falar com o Merece, pra ver o que tinha acontecido. O Tonelada, foi estranhamente gentil:
“Ah, pois não, podes vir”. E foi entrando na carceragem, na ala das duas celas da delegacia, uma de frente para outra com um corredorzinho no meio. O Tonelada foi na frente, abriu a cela e o Merece tava lá, com o rosto inchado, deitado no papelão que é a “cama" daquela cela. O Ruela, vendo o irmão, foi entrando. Quando estava na metade da porta, o Tonelada deu um empurrão nele pra dentro e trancou a cela!
“Tá pensando que é colegial?, vindo buscar o irmãozinho que brigou? Vai ficar aí, pra aprender!”
“Mas Tonelada, eu não fiz nada, abre aqui!”
“Espera o delegado chegar!”
O delegado só voltaria na quarta-feira, e era domingo, ainda!.
Quando chegou a notícia que o Ruela ficou preso com o Merece, a Milagres foi levada para o hospital. Chamaram até a ambulância, mas no tempo que o Manobra, motorista da ambulância, levou para ir do açougue do Retalho onde tava tomando uma e chegar no hospital pra pegar a ambulância, já haviam levado a Milagres num “carro de mão” (daqueles que os carregadores da beira usam para fazer os fretes do navio até os comércios)!
Pois foi lá no hospital que apareceu o Rui Barbosa. "Rui Barbosa" não era nome, era apelido. Filho do Mariposa, um homem abastado na cidade, o Rui Barbosa, nascido João Paulo de Deus, resolveu que iria estudar direito. E foi-se pra capital. Em Belém, cursa direito e fica durante todo o período letivo por lá, voltando pro Marajó nas férias. Na primeira vez que voltou, já veio com um livro embaixo do braço: “oração aos moços” de Rui Barbosa. E inventou de querer ler para os amigos. Na terceira linha o pessoal começou a bocejar e no meio da primeira página alguém gritou: “cala a boca, Rui Barbosa”. Pronto. Virou Rui Barbosa… e adorou! 
Estava já no sexto semestre de direito. E era sobrinho da Milagres. Foi ver a tia no hospital e ela logo pediu para ele ver se fazia alguma coisa pelo Merece. Lá foi o Rui Barbosa. 
“Boa noite, Policial”. 
“Tá de onda comigo, Rui? Te conheço desde moleque e tu sempre me chamaste de Tonelada. O que é que tu queres?”
“Falar com meu cliente”.
“Teu o quê?” 
“Meu cliente, seu Policial! O cidadão que está com a liberdade cerceada por ato arbitrário, encontrando-se ilegalmente segregado”.
O Tonelada não entendeu coisa nenhuma: 
“Tu estás querendo falar com o Merece?”
“Isso, com o cidadão Virgílio Augusto de Deus Filho!” (era o nome do Merece).
O Brédi deu uma risadinha discreta quando o Tonelada ficou gentil de novo!
“Pois não, doutor, por aqui!”
Ter sido chamado de “doutor" arrepiou o Rui Barbosa que sentiu uma indescritível emoção! Entrou garboso pelo corredor da carceragem. Tonelada abriu a Cela. 
… isso! Exatamente. Estavam presos, agora, o Merece, o Ruela e o Rui Barbosa. E a Milagres chorando para o Goela.
“… mas tu não mandaste também o Rui Barbosa lá na delegacia, Milagres?”
“Foi, Goela… E agora estão os três presos Por lá. Faz alguma coisa pelo amor de Deus!”
“Vou fazer sim: vou é ficar longe da delegacia! Tu tá é doida de pensar que eu vou lá! Se o Tonelada já prendeu três, pra prender quatro é um instantinho!”. 
Desvencilhou-se da Milagres e saiu com o passo ligeiro das pernas compridas que tem.
Passando pelo trapiche municipal, viu encostado o navio da Marinha Brasileira, que veio em um programa social com vários serviços: consultórios odontológicos, médicos, serviço de fazer carteira de identidade, registro civil de nascimento e casamento, exames de doenças, inclusive AIDS e alguns outros. Já logo cedo quando o navio encostou começou a formar filas! As filas para os médicos são as mais longas, seguidas dos consultórios odontológicos. Depois registros e identidades. Normalmente, o único que não tem muita fila é para fazer exames, como o de AIDS. 
Mas, de qualquer forma, o trapiche e toda a beira da cidade ficam bem agitados. Passando pelo açougue do Retalho, tava lá o Manobra, já com um copo de cerveja na mão:
“Fala Goela! Aproveitas o navio e arruma tua situação com a Afrodite! Tira logo tua certidão de casamento!”
“Do jeito que a coisa tá, Manobra, ela vai querer fazer logo o divórcio, sem nem ter casamento, pra economizar na papelada!” Disse sem parar de caminhar e logo foi entrando no fórum!
Por causa do navio de serviços no trapiche, o movimento no fórum estava muito calmo. Por volta de 11 horas, o comandante do navio veio apresentar-se no fórum e pediu para falar comigo, levando-me para uma visita, na qual fui acompanhado pelo Goela e pelo Barganha, Diretor de Secretaria. E notei que, de fato, no serviço de exame de doenças sexualmente transmissíveis e aids, as filas estavam pequenas, enquanto em todos os outros, as filas estavam bem grandes. 
Pois foi daí que falei para os dois que deveríamos dar o exemplo e fazer o exame para incentivar as outras pessoas. 
“Nem pensar!”
“De jeito nenhum, doutor!”
O Goela e o Barganha falaram quase juntos.
“Hein?! Deixem de bobagem, bora logo dar o exemplo! É só um furinho no dedo!”
Eles, contra a vontade, e eu com medo de furar o dedo, mas tendo que dar o exemplo, fomos. Fui o primeiro. (E dói mesmo!, mas não falei pra eles!).
Depois perguntei como era para pegar o resultado, e disseram que era para voltarmos por volta de 16 horas.
Como perto de 16 horas, o expediente do fórum já havia acabado, fui sozinho pegar meu exame. Com o perdão da expressão, mas como a gente diz lá no Rio Grande onde eu me criei: levei um “cagaço”!
“O senhor tem que passar com a psicóloga”, disse-me um atendente de branco, sem nem prestar atenção direito em mim.
“Hein?”.
“Com a psicóloga, ali na outra sala”.
Fiquei imaginando minha vida pra trás e pra frente. Pra trás para tentar ver por que diabos poderia eu precisar falar com a psicóloga, se eu tinha certeza que não tinha aprontado. Tirei sangue duas ou três vezes, mas sempre foi minha mãe, D. Zélia, no laboratório lá em Santo Antônio da Patrulha no Rio Grande do Sul quem furou meu braço. E sei que todo o material é descartável! Será que pode pegar AIDS usando banheiro público? Mas eu sabia que não… Já tava arrependido de ter inventado de fazer o exame! Se eu não tivesse feito não ia saber e não ia ter nada! Ah, que bobagem… claro que foi importante fazer. Agora tenho que mudar muita coisa e arrumar tudo direitinho pra frente… 
“Pode passar”, me disse uma moça que não deveria ter mais de 25 anos, interrompendo meus pensamentos.
Eu tava com os olhos arregalados, esperando a notícia. Pois a moça perguntou meu nome, minha idade e me deu o papel com o resultado: “negativo”. 
“Negativo?” Eu falei sem querer, achando que só tinha pensado.
“É”. 
“Mas e por quê, então, falar com a senhora? A senhora é psicóloga, né?”
"Sou sim”, ela riu. “Todos recebem o exame comigo. Se só os positivos recebessem comigo, todos iriam saber quem é positivo e quem não é, só por ter que vir falar comigo”.
Báh… o dia nunca esteve tão bonito, depois que saí dali! E fiquei imaginando o susto que o Barganha e o Goela levariam também.
Pois foi o exame o causador dos arranhões no Goela! E por isso ele disse que eu fui o culpado, porque eu que disse pra ele fazer.
Ele contou que depois que buscou o resultado, ficou todo feliz que deu negativo e foi correndo mostrar pra Afrodite! … e daí, que foi a encrenca!
“Doutor, daí não foi o celular, que esse eu já nem tenho mais, doutor. Daí que voou tudo o que tinha pra voar na minha direção. Quando acabou tudo que ela conseguiu jogar em mim, doutor ela pulou pra me agatanhar, dizendo que eu tava de graça com ela.”
“Mas por quê, Goela? Ela queria que desse positivo?”
“Não doutor! Ele ficou foi louca de raiva porque num dia ela vê uma mensagem de piriguete no meu celular, no outro eu vou fazer exame de AIDS!"
A Mensagem no telefone do Goela? … ah, essa é OUTRA história!


Por Luís Augusto Menna Barreto



terça-feira, 18 de outubro de 2016

crônica - Distéfano, Magistrado e... tá bom!

Distéfano, Magistrado e… tá bom!

Originalmente  publicado no antigo blog
"Menna Comentários", precursor deste.
Data da postagem original: 26.04.2016.
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"Sim, Magistrado. Como tu explicas esse valor de combustível? Tu estás navegando os rios de motocicleta”?
“Não… é que… (tosse)… sabe… (pigarro)… é muita coisa, doutor. Eu não paro.”
Estavam os dois na minha frente. Não posso negar que achava divertida a forma como o Magistrado ficava nervoso tentando explicar por que o valor do combustível ficava 5 vezes maior do que o apresentado pelo Distéfano, que cumpria praticamente o mesmo número de mandados!
Não "Magistrado" não era o juiz. O juiz era eu! “Magistrado” e “Distéfano" eram os apelidos de dois oficiais de justiça. O Magistrado ganhou esse apelido, porque era muito educado e era formado em direito. Oficial de Justiça da nova geração, conhecedor da Lei, que passou no concurso e, da capital do Estado onde nasceu e foi criado, foi lotado no Marajó. Já o Distéfano era Oficial de Justiça há mais de trinta anos, conhecedor dos atalhos da profissão, além de nascido e criado no arquipélago. O apelido, recebeu na juventude. Dizem que por causa de um famoso jogador de futebol argentino, que jogou no Real Madri chamado Di Stéfano. Sempre com uma pastinha embaixo do braço, Distéfano mandou plastificar meia página de jornal de trinta anos atrás, onde há uma reportagem falando que o time local havia empatado com o Paysandu, e o destaque do jogo fora ele. Como o repórter não sabia o nome daquele jogador do interior e a matéria foi feita dois dias depois na capital, o repórter inventou o apelido. O Distéfano jura que é dele que fala a reportagem e pegou o apelido pra ele. Quando conhece alguém, logo puxa a reportagem e mostra a foto apontando para um dos jogadores. De tão amarela e velha a fotografia, não tem como identificar ninguém. Então, pra qualquer um que ele aponte, pode ser ou não, mas duvidar na frente dele, ninguém duvida!
Já o Magistrado tem o dobro do tamanho do Distéfano e a metade da barriga. Dizem que é faixa preta de alguma dessas lutas por aí. Isso eu não sei. Mas por via das dúvidas, nunca procuro confusão com ele, porque não quero confusão com ninguém que tenha calo na orelha!
O caso é que sempre que eu conferia o valor do combustível dos dois, dava diferença! E muito grande! Mas não passava pela cabeça de ninguém que o Magistrado estaria superfaturando o valor. Aliás, o que se comentava é que ele colocava combustível pagando do próprio bolso, algumas vezes, para não parecer que gastou demais. Mas não tinha jeito: na hora de acertar as contas, lá vinha o Distéfano com valores menores!
“Doutor”, tentava explicar-se o Magistrado, “será que é pela região dos mandados, doutor? O Distéfano pode estar fazendo muito mandado nas ilhas, de barco, e eu por aqui. Será que não é isso, doutor?”
O Distéfano sorria, encolhia os ombros, e dizia:
“Tá bom…”. Saía quase sem som o “m" do final. Ficava assim: “Tá bô…”
Até que um dia decidi: pegamos uma sequencia de uns oitenta mandados para cada um e fiz questão que fossem em regiões semelhantes. Chamei os dois, expliquei a situação e perguntei:
"Dá conta de cumprir isso em 15 dias?"  
“Apertado, doutor… mas acho que dá”, falou o Magistrado.
Olhei pro Distéfano e ele apenas encolheu os ombros e deu o meio sorriso:
“Tá bom…"
Quatro ou cinco dias depois, enquanto eu via o Magistrado pra cima e pra baixo, sempre com cara de apressado, encontrei o Distéfano bem sentado em uma mesinha na calçada no bar do restaurante que fica na avenida principal da cidade. Estava ali, tranquilo, sentado, um copinho discreto de cerveja e a pastinha com mandados e a reportagem plastificada.
“E aí, Distéfano? Correria?”
“Ta bom…”. Por mais que eu tentasse uma conversa diferente, o Distéfano vinha: “Tá bom…”. 
“Muito mandado essa semana, Distéfano?”
“Tá bom…”.
“O Remo vence essa?”
“Tá bom…”.
“Será que CHOVE, Distéfano?”
“Tá bom…”.
No fim, minhas perguntas para ele eram todas retóricas porque eu sei que ele viria com o “Tá bom…” dele!
E a coisa foi indo assim…
Mais uns dias e tudo continuava do mesmo jeito: 
Magistrado de moto pra cima e pra baixo, apressado… … e o Distéfano era visto sentado, tranqüilo, olhando a avenida com sua pastinha debaixo do braço, eventualmente com uma cervejinha.
Passaram os quinze dias, peguei os relatórios no sistema e chamei os dois.
Com exceção de um ou outro que não foi intimado porque mudou de residência, dois ou três embrenhados no mato ou embarcados a trabalho em algum navio, os dois Oficiais cumpriram praticamente todos os mandados.
O Magistrado havia gasto 4 vezes mais combustível que o Distéfano.
Era fato. O Magistrado estava cada vez mais encabulado. E olha que se esforçou, usou atalhos, andou a pé, pegou carona… mas gastou mais que o Distéfano.
Claro que eu fiquei curioso. Perguntei:
“Sim, Distéfano! Como tu fazes isso?”
Adivinha…?
Isso mesmo: meio sorriso, encolheu os ombros e soltou:
“Tá bom…”. Acho que era de propósito, pra me sacanear!
Desisti de entender, mas vi que o Magistrado não estava fazendo nada de errado.
E ficou por isso mesmo.
Dia desses, numa das raras oportunidades que consigo sair do fórum para almoçar, resolvi ir  justamente almoçar no restaurante da avenida. Fui lá atrás, na parte que tem ar condicionado. Quando terminei o almoço fui lá no balcão da frente fazer o pagamento. É o próprio dono quem cuida do caixa. Quando perguntei sobre a conta ele desculpou-se e pediu licença um instante:
“Um momentinho, por favor, doutor!” Virou-se para um freguês que estava saindo: “Carretilha! Peraí. Vem cá!”. E o freguês virou-se e veio até o balcão.
“Assina aqui, carretilha: o Distéfano deixou aqui, caso tu aparecesse. Tem audiência dia 20 as 10 horas. A Socorro te botou na justiça. Tem que pagar a pensão do filho, Carretilha”. 
O Carretilha assinou, pegou o papel e foi embora.
“Deu R$ 35,00, doutor”.
Pois é. Descobri, depois, que o Distéfano ficava ali no bar e, quando não estava, deixava um ou outro mandado para o dono do bar pegar as assinaturas. Cidade do interior, todo mundo uma hora ou outra, passa no bar da avenida principal.
Mas não falei pro Magistrado. Nesse rumo, acabariam querendo trocar a verba do combustível por grade de cerveja!
“Tá bom…”!

Por Luís Augusto Menna Barreto