Crônica - Goela, Afrodite e o Exame
Foi impossível não notar quando o Goela chegou no fórum: eram dois traços paralelos , em diagonal no rosto do Goela.
“Isso não é nada doutor”, e levantou a camisa e e havia várias marcas semelhantes, às vezes com três ou quatro traços! Arranhões fundos.
“Tudo culpa sua, doutor!”
“Hein?”
O dia anterior do Goela havia sido um dia daqueles:
“… tu tens que ir lá, Goela, pelamordiDeus! Só tu pode resolver isso, vai lá!”
O Goela nem bem tinha acordado ainda. Estava espremendo os olhos nos primeiros raios de sol, em algum horário que ele estimava que fosse por volta de 8 horas da manhã, mas ele não tinha como saber muito bem, desde que a Afrodite, dois dias atrás, quebrou o celular dele quando ele esqueceu sem senha e apareceu uma mensagem que a Afrodite achou que fosse de alguma “piriguete”, que era como ela chamava todas as outras que por acaso olhassem para o Goela. Ele nem conseguiu argumentar nada, porque soube da mensagem no exato momento em que o telefone estava voando em direção a sua cabeça. A Afrodite, esposa dele, jogou o celular na direção da cabeça do Goela que conseguiu abaixar a tempo e ouvir o celular espatifar na parede. Daí, que desde então, o Goela não sabe mais as horas direito.
Se de tudo se pode tirar um lado bom, essa é a desculpa para ele chegar com algum atraso no fórum.
No dia anterior olhei pra ele, cumprimentando-o como sempre faço e, sem que eu perguntasse ele foi falando:
“Foi a Afrodite, doutor. Ela quebrou meu celular!” E levantou os ombros como quem diz “a culpa não é minha”.
Mas a verdade é que com ou sem celular, o Goela sempre chegou atrasado, por volta de 8h e 20min!
Pois ele estava saindo de casa e a Milagres já puxou a manga do Goela:
“… tu tens que ir lá, Goela, pelamordiDeus! Só tu pode resolver isso, vai lá!”
O Merece, filho da Milagres, havia sido preso… de novo! Por briga… de novo!
“Tá doida, Milagres, que eu vou lá?! Tu já não pediste pro Ruela ir?”
Ruela era o filho mais velho da Milagres. Merece, o mais novo. Entre os dois havia outros cinco!
Houve uma briga no campo de futebol, durante o campeonato da cidade… daí, o Merece, que sempre foi esquentado, foi um dos que puxou a briga. A PM fez o de sempre: presente com todo o efetivo do dia (dois homens), ficaram só olhando. Viram quem começou e esperaram… quando os brigões começaram a cansar, eles entraram com o cacetete na mão e pronto! O pessoal mais esperto saiu correndo. Eles vão direto em quem começa a briga e recolhem!
Daí que o Merece tá preso.
Quando chegou a notícia, à noitinha, para a Milagres, ela quase desmaiou, subiu a pressão, tiveram que abanar, dar água com açúcar, essas coisas… foi então que a Milagres mandou o Ruela, filho mais velho, à noite mesmo, na delegacia, ver se fazia alguma coisa.
Quando o Ruela chegou lá, o delegado não estava. Estava só o Brédi-Piti que é um preso que toma conta da delegacia quando tá respondendo algum processo, e o Tonelada, um dos policiais que prenderam o Merece. Como o carcereiro Fechadura havia saído pra jantar e o delegado não estava na cidade, o Tonelada resolveu ficar ali, esperando porque sempre desconfia do Brédi-Piti. Para o Tonelada, se é preso, tinha que estar trancado na cela. Não confia em preso cuidando de preso!
Quando o Ruela chegou, pediu pra falar com o Merece, pra ver o que tinha acontecido. O Tonelada, foi estranhamente gentil:
“Ah, pois não, podes vir”. E foi entrando na carceragem, na ala das duas celas da delegacia, uma de frente para outra com um corredorzinho no meio. O Tonelada foi na frente, abriu a cela e o Merece tava lá, com o rosto inchado, deitado no papelão que é a “cama" daquela cela. O Ruela, vendo o irmão, foi entrando. Quando estava na metade da porta, o Tonelada deu um empurrão nele pra dentro e trancou a cela!
“Tá pensando que é colegial?, vindo buscar o irmãozinho que brigou? Vai ficar aí, pra aprender!”
“Mas Tonelada, eu não fiz nada, abre aqui!”
“Espera o delegado chegar!”
O delegado só voltaria na quarta-feira, e era domingo, ainda!.
Quando chegou a notícia que o Ruela ficou preso com o Merece, a Milagres foi levada para o hospital. Chamaram até a ambulância, mas no tempo que o Manobra, motorista da ambulância, levou para ir do açougue do Retalho onde tava tomando uma e chegar no hospital pra pegar a ambulância, já haviam levado a Milagres num “carro de mão” (daqueles que os carregadores da beira usam para fazer os fretes do navio até os comércios)!
Pois foi lá no hospital que apareceu o Rui Barbosa. "Rui Barbosa" não era nome, era apelido. Filho do Mariposa, um homem abastado na cidade, o Rui Barbosa, nascido João Paulo de Deus, resolveu que iria estudar direito. E foi-se pra capital. Em Belém, cursa direito e fica durante todo o período letivo por lá, voltando pro Marajó nas férias. Na primeira vez que voltou, já veio com um livro embaixo do braço: “oração aos moços” de Rui Barbosa. E inventou de querer ler para os amigos. Na terceira linha o pessoal começou a bocejar e no meio da primeira página alguém gritou: “cala a boca, Rui Barbosa”. Pronto. Virou Rui Barbosa… e adorou!
Estava já no sexto semestre de direito. E era sobrinho da Milagres. Foi ver a tia no hospital e ela logo pediu para ele ver se fazia alguma coisa pelo Merece. Lá foi o Rui Barbosa.
“Boa noite, Policial”.
“Tá de onda comigo, Rui? Te conheço desde moleque e tu sempre me chamaste de Tonelada. O que é que tu queres?”
“Falar com meu cliente”.
“Teu o quê?”
“Meu cliente, seu Policial! O cidadão que está com a liberdade cerceada por ato arbitrário, encontrando-se ilegalmente segregado”.
O Tonelada não entendeu coisa nenhuma:
“Tu estás querendo falar com o Merece?”
“Isso, com o cidadão Virgílio Augusto de Deus Filho!” (era o nome do Merece).
O Brédi deu uma risadinha discreta quando o Tonelada ficou gentil de novo!
“Pois não, doutor, por aqui!”
Ter sido chamado de “doutor" arrepiou o Rui Barbosa que sentiu uma indescritível emoção! Entrou garboso pelo corredor da carceragem. Tonelada abriu a Cela.
…
… isso! Exatamente. Estavam presos, agora, o Merece, o Ruela e o Rui Barbosa. E a Milagres chorando para o Goela.
“… mas tu não mandaste também o Rui Barbosa lá na delegacia, Milagres?”
“Foi, Goela… E agora estão os três presos Por lá. Faz alguma coisa pelo amor de Deus!”
“Vou fazer sim: vou é ficar longe da delegacia! Tu tá é doida de pensar que eu vou lá! Se o Tonelada já prendeu três, pra prender quatro é um instantinho!”.
Desvencilhou-se da Milagres e saiu com o passo ligeiro das pernas compridas que tem.
Passando pelo trapiche municipal, viu encostado o navio da Marinha Brasileira, que veio em um programa social com vários serviços: consultórios odontológicos, médicos, serviço de fazer carteira de identidade, registro civil de nascimento e casamento, exames de doenças, inclusive AIDS e alguns outros. Já logo cedo quando o navio encostou começou a formar filas! As filas para os médicos são as mais longas, seguidas dos consultórios odontológicos. Depois registros e identidades. Normalmente, o único que não tem muita fila é para fazer exames, como o de AIDS.
Mas, de qualquer forma, o trapiche e toda a beira da cidade ficam bem agitados. Passando pelo açougue do Retalho, tava lá o Manobra, já com um copo de cerveja na mão:
“Fala Goela! Aproveitas o navio e arruma tua situação com a Afrodite! Tira logo tua certidão de casamento!”
“Do jeito que a coisa tá, Manobra, ela vai querer fazer logo o divórcio, sem nem ter casamento, pra economizar na papelada!” Disse sem parar de caminhar e logo foi entrando no fórum!
Por causa do navio de serviços no trapiche, o movimento no fórum estava muito calmo. Por volta de 11 horas, o comandante do navio veio apresentar-se no fórum e pediu para falar comigo, levando-me para uma visita, na qual fui acompanhado pelo Goela e pelo Barganha, Diretor de Secretaria. E notei que, de fato, no serviço de exame de doenças sexualmente transmissíveis e aids, as filas estavam pequenas, enquanto em todos os outros, as filas estavam bem grandes.
Pois foi daí que falei para os dois que deveríamos dar o exemplo e fazer o exame para incentivar as outras pessoas.
“Nem pensar!”
“De jeito nenhum, doutor!”
O Goela e o Barganha falaram quase juntos.
“Hein?! Deixem de bobagem, bora logo dar o exemplo! É só um furinho no dedo!”
Eles, contra a vontade, e eu com medo de furar o dedo, mas tendo que dar o exemplo, fomos. Fui o primeiro. (E dói mesmo!, mas não falei pra eles!).
Depois perguntei como era para pegar o resultado, e disseram que era para voltarmos por volta de 16 horas.
Como perto de 16 horas, o expediente do fórum já havia acabado, fui sozinho pegar meu exame. Com o perdão da expressão, mas como a gente diz lá no Rio Grande onde eu me criei: levei um “cagaço”!
“O senhor tem que passar com a psicóloga”, disse-me um atendente de branco, sem nem prestar atenção direito em mim.
“Hein?”.
“Com a psicóloga, ali na outra sala”.
Fiquei imaginando minha vida pra trás e pra frente. Pra trás para tentar ver por que diabos poderia eu precisar falar com a psicóloga, se eu tinha certeza que não tinha aprontado. Tirei sangue duas ou três vezes, mas sempre foi minha mãe, D. Zélia, no laboratório lá em Santo Antônio da Patrulha no Rio Grande do Sul quem furou meu braço. E sei que todo o material é descartável! Será que pode pegar AIDS usando banheiro público? Mas eu sabia que não… Já tava arrependido de ter inventado de fazer o exame! Se eu não tivesse feito não ia saber e não ia ter nada! Ah, que bobagem… claro que foi importante fazer. Agora tenho que mudar muita coisa e arrumar tudo direitinho pra frente…
“Pode passar”, me disse uma moça que não deveria ter mais de 25 anos, interrompendo meus pensamentos.
Eu tava com os olhos arregalados, esperando a notícia. Pois a moça perguntou meu nome, minha idade e me deu o papel com o resultado: “negativo”.
“Negativo?” Eu falei sem querer, achando que só tinha pensado.
“É”.
“Mas e por quê, então, falar com a senhora? A senhora é psicóloga, né?”
"Sou sim”, ela riu. “Todos recebem o exame comigo. Se só os positivos recebessem comigo, todos iriam saber quem é positivo e quem não é, só por ter que vir falar comigo”.
Báh… o dia nunca esteve tão bonito, depois que saí dali! E fiquei imaginando o susto que o Barganha e o Goela levariam também.
Pois foi o exame o causador dos arranhões no Goela! E por isso ele disse que eu fui o culpado, porque eu que disse pra ele fazer.
Ele contou que depois que buscou o resultado, ficou todo feliz que deu negativo e foi correndo mostrar pra Afrodite! … e daí, que foi a encrenca!
“Doutor, daí não foi o celular, que esse eu já nem tenho mais, doutor. Daí que voou tudo o que tinha pra voar na minha direção. Quando acabou tudo que ela conseguiu jogar em mim, doutor ela pulou pra me agatanhar, dizendo que eu tava de graça com ela.”
“Mas por quê, Goela? Ela queria que desse positivo?”
“Não doutor! Ele ficou foi louca de raiva porque num dia ela vê uma mensagem de piriguete no meu celular, no outro eu vou fazer exame de AIDS!"
…
A Mensagem no telefone do Goela? … ah, essa é OUTRA história!
Por Luís Augusto Menna Barreto