domingo, 18 de novembro de 2018

O Escápula, o Martelo, o De Fundo e o Assalto


— Foi pelo desaforo, doutor.
Parecia que o Martelo ainda estava brabo!
O Escápula tava ali, sentado, sem dizer uma palavra, com o olho todo roxo e o lábio um pouco inchado. O Escápula tinha apanhado do Martelo. Bastante.
A mãe do Escápula estava lá. Furiosa. Já havia batido nele desde a delegacia. 
… batido no Escápula, não no Martelo!
Quando é o Tonelada, policial militar, que está cuidando da cadeia, na ausência do delegado e no almoço do Fechadura, ele normalmente não deixa ninguém entrar na cela pra falar com preso. Ou, se entra, ele simplesmente não deixa sair! 
Mas com a mãe do Escápula foi diferente. Quando ele viu a fúria da Das Dores, ficou amável na mesma hora, e foi logo abrindo a cela. O pobre Escápula chegou a tentar falar:
— Pô, Tonelad….
Sentiu o primeiro tapa na cabeça. E foi uma avalanche:
— Miserável! Foi pra isso que te criei, infeliz? Te falta alguma coisa em casa? Não tem sempre uma farinha e um açaí, seu escomungado? Queres matar tua mãe de desgosto? Tem "precisão" de pegar o que é dos outros…
E por aí, foi! O Tonelada chegou mesmo a pegar um banco e ficar olhando o pobre Escápula pegando tapa da mãe. 
Mas apanhar feio mesmo, ele apanhou do Martelo!
O Martelo eu conheci em Novo Progresso. Ele é pai do Prego, do Taxinha e de mais cinco filhos! Por coincidência, ele veio de Novo Progresso, no sudoeste do Pará, para o Marajó. Eu já sabia que o Martelo era brabo. E ele deixou o Escápula bem machucado.
Mas a audiência não era pra julgar o Martelo. O Martelo era a vítima! O réu era o Escápula!
Tivemos um pouco de trabalho para conter a Das Dores no fórum. Diz que* ela veio desde a delegacia, no trajeto de trezentos metros a pé, até o fórum, xingando e dando tapa na cabeça do Escápula.
Eu comecei:
— Sim, Escápula, me digas o que aconteceu! Eu tô vendo aqui que tu nunca tiveste problema com polícia, estudaste até a 4ª série**, trabalha fazendo bico de entrega na loja do Mariposa e faz carreto na beira. O que te deu de fazer isso?
— Não lembro, doutor, tava porre. Tava bebendo desde quinta, e só lembro de acordar na delegacia, com a mamãe me ralhando.
Eu tentei insistir um pouco, mas não adiantou. Ele não lembrava mesmo.
Então vou contar. A história foi a seguinte:
O Escápula começou a beber com o De Fundo, na casa dele e mais o Fila Bóia e o Cara de Cuspe. Começaram na noite da quinta, véspera do feriado de finados, que este ano foi na sexta-feira. Estava pra amanhecer o domingo, e acabou a bebida. O Escápula e o De Fundo, que ainda davam conta de caminhar, resolveram sair pra “arranjar" mais bebida. 
Foi então que viram o Martelo chegando de bicicleta em casa, com o Taxinha na garupa. Tiveram a infeliz idéia de assaltar o Martelo.
A empreitada já foi dando errado desde o início: o De Fundo já ficou caído porre no caminho. Não deu conta de chegar nem perto do Martelo. O Escápula, que nem notou isso, colocou a mão direita por baixo da camiseta e simulou que iria pegar uma arma. 
— Perdeu. Perdeu. Me dá a carteira.
O Martelo, óbvio, levou um susto e o Taxinha ficou apavorado. O primeiro ímpeto do Martelo foi reagir, porque viu que o Escápula tava porre. Mas pensou no Taxinha e resolveu entregar a carteira. 
Quando estava entregando, o Escápula viu que o Martelo tinha um celular na cintura e resolveu roubar o celular também. Enquanto pegava a carteira do Martelo com a mão esquerda (a direita estava simulando arma por baixo da camiseta)  falou:
— Perdeu o celular também. Bora.
O Martelo respirou fundo, pensou no Taxinha de novo e entregou o celular.
Mas daí que a coisa desandou: como o Escápula estava com a mão esquerda ocupada com a carteira do Martelo, foi pegar o celular com a direita…
Isso mesmo: o leso tirou a mão de baixo da camiseta e o Martelo viu que não havia arma. Olhou pro Taxinha e disse: 
— Vai pra dentro, moleque. Guarda a bicicleta e fala pra mamãe que tá tudo bem!
E a pisa começou!
Depois da pisa, o próprio Martelo ligou pro Tonelada, que recolheu o Escápula.
Já era segunda-feira, na audiência e o rosto do Escápula ainda estava bem machucado. Então, como o Martelo tava lá, resolvi conversar com ele:
— Olha, Martelo, não devias ter feito isso…
— Eu sei, doutor…
— … eu entendo que deves ter ficado nervoso, afinal estavas sendo assaltado na presença do teu filho e sei que isso pode traumatizar a cri…
— Foi pelo desaforo, doutor. — Ele me interrompeu.
— Hein? 
— Desaforo, doutor.
— Que desaforo, Martelo?
— Tava me tirando pra otário, doutor. Já fui assaltado antes. Nem fiquei muito brabo, porque foi tudo coisa de homem, doutor. O malandro tava com arma, me ameaçou mostrando o revolver e tudo. Daí tudo certo! Mas esse abestado me tirou pra otário, doutor! Quis me assaltar sem arma? Onde já se viu? Ao menos uma faca tivesse, doutor! Mas querer me assaltar sem arma é coisa de moleque! Me fez muita raiva!
Pois é: o problema não foi o assalto. Foi a falta de ao menos uma arma!
O De Fundo? Ah!, ninguém deu bola pra ele, nem o Tonelada. É comum ele ficar caído na rua depois de um porre. Ninguém nem mais estranha, na cidade. Daí o apelido: uma mistura de “defunto” com “no fundo de uma garrafa”.
Mas essa história, eu conto outro dia!


Por Luís Augusto Menna Barreto

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

O Mariposa, a Marreta e a Pequena




— A culpa… meio que é sua, doutor…
— Hein?
Ele meio que se assustou, e apertava ainda mais o velho boné nas mãos.
— É, doutor… o senhor me desculpe, sabe…?! … mas eu tentei ficar longe da Pequena.
— Como tentaste ficar longe, Mariposa? Tu estavas era preso! 
— Pois então, doutor…
— Então o quê, Mariposa? Mal saíste e já aprontaste de novo, foi te meter em confusão com a Pequena?!
— Mas por isso, doutor…
— Por isso o quê, Mariposa? Desse jeito, vou ter que decretar tua prisão de novo!
— Justamente, doutor…
Nesse momento, notei que o Goela balançava a cabeça como quem faz aquele som de “tsc tsc tsc” quando a gente ou se conforma com alguma coisa ou pensa “isso não tem jeito”.
O Mariposa, um comerciante até respeitado na cidade, chegou outro dia, todo agatanhado no pescoço, um lado do rosto, a camisa rasgada, e queria me mostrar até onde mais estava com marcas de unhas, mas eu disse que não era preciso. O Tonelada, policial que trouxe o Mariposa, disse que quando chegou na casa, tava tudo quebrado: TV no chão, geladeira virada, cadeiras quebradas.
— E a Pequena, Tonelada? — eu perguntei naquela ocasião.
— Ah, doutor, não gosto de falar… tava difícil. — respondeu o Tonelada, meio sem jeito.
— O que houve? Tava muito machucada?
— Não, doutor. Difícil foi conter a Pequena, que tava com uma marreta tentando quebrar a porta do banheiro onde o Mariposa tava trancado. A sorte é que ela não dava conta de levantar a marreta, doutor.
Quando ele disse isso, já pensei em soltar o Mariposa, mas ele logo foi falando:
— Bati na Pequena, doutor!
— O quê? Tu nunca foste disso, Mariposa! 
— Tava bebido, bati, doutor!
Ele não parecia bebido. 
— Mariposa, fala a verdade!
Ele não me olhava. Ficava com a cabeça baixa.
— Bati, doutor.
— E a Pequena? — Perguntei pro Tonelada.
O Mariposa arregalou os olhos, e olhou pro Tonelada.
Desculpa, doutor, não deu de trazer a Pequena. Ela me ameaçou com a marreta. Mas não deu conta, largou a marreta e saiu. Daí trouxe o Mariposa. Tive que arrombar a porta, porque ele não acreditou que a Pequena tinha saído.
Eu ia soltar o Mariposa. Mas antes que eu dissesse algo ele falou.
— Se eu me encontrar com a Pequena vai dar morte, doutor.
Olhei o Goela que discretamente balançou a cabeça em sinal afirmativo. 
Resolvi por mandar o Mariposa pra cadeia e o Tonelada entregou ele pro Fechadura, o carcereiro, que entregou o Mariposa pro Brédi Piti, o preso que cuida da carceragem enquanto o Fechadura toma uma e o Delegado tá viajando.
Dois dias depois, o promotor que havia substituído o anterior (o promotor Cava-Cova que cavou a própria) chegou na cidade e entendeu que nem era caso de denúncia. Pediu o arquivamento do expediente. Até porque, ninguém encontrou a Pequena. 
Então, soltei o Mariposa. E não demorou nem um dia, e ele estava ali de novo, algemado. A Pequena tinha ido parar no hospital. Daí que essa vez era grave. E o Mariposa dizendo que a culpa era minha!
Como não havia laudo, mandei o Goela correr no hospital que fica bem em frente da delegacia. Ele voltou rápido. Como não havia médico, o Goela nem falou com a técnica de enfermagem. Foi direto na fonte das notícias. Passou rápido no açougue do Retalho e soube detalhes com o Manobra, motorista da ambulância que tava lá jogando bilhar e tomando a segunda do dia, afinal, já era, quase 10 horas da manhã! 
O Mariposa tinha trocado a Constante, companheira de toda a vida, pela Pequena, com metade da idade. Mas a Pequena era braba. Bastou um dia o Mariposa chegar tarde, cheirando a Leite de Rosas, e a Pequena mostrou seu tamanho. Agatanhou todo o Mariposa e quebrou tudo na casa. Há quem diga que se o Tonelada não tivesse chegado, ou se a marreta fosse mais leve, ela tinha matado o Mariposa.
— Doutor… — ele continuou — se o senhor não tivesse me soltado tão cedo, doutor…
Hein? Pois é… o Mariposa estava me culpando, por te-lo soltado! 
— Eu também tenho culpa, doutor. Não devia ter deixado a Constante pela Pequena… e a Constante tava até indo me levar merenda na delegacia, doutor… não era pra ter me soltado.
— Mas agora tu vais preso mesmo, Mariposa! A Pequena foi parar no hospital, afinal de contas!
O Goela se aproximou. Cochichou no meu ouvido:
— Não deu conta da marreta, doutor.
— Hein? — (Foi um “hein" cochichado).
— Foi levantar a marreta pra bater no Mariposa e deixou cair no pé. Tá lá no hospital com o pé quebrado e jurando o Mariposa.

Por Luís Augusto Menna Barreto