O Quebra Salto, o Polegada e o Incorporado
Como eu disse, depois do caso do Fila Bóia e do Cara de Cuspe, com a morte do promotor Cava-Cova, tudo voltou ao normal: no final das festas, voltou a ter alguém querendo furar alguém…
Pois foi daí que chegou no caso do júri do Quebra Salto:
— … não foi o Quebra Salto quem ME furou… não foi ele…
O paletó estava desalinhado e quase pingando de suor! O advogado estava com os olhos pra cima, quase piscando, daquele jeito que meio que fica aparecendo os brancos dos olhos e as pupilas parecem querer subir pra testa pelo lado de dentro dentro.
Eu nunca gostei de júris! Quer dizer, como juiz, nunca gostei de júris, porque a função é basicamente administrativa. Como um “mestre de cerimônias”. Porque toda a ação de verdade, é desenvolvida pelo promotor e pelos advogados de defesa! Eu adorava júri quando era advogado! Porque sempre fui meio exibido, então, eu tinha 2 horas pra falar e toda a atenção era pra mim!
… mas como juiz…? Ufa… confesso que às vezes quase dá vontade de dormir.
Mas aquele júri, definitivamente foi diferente!
Primeiro que não fazia muito da morte do Cava-Cova! Era recém o segundo júri. O primeiro foi o júri do Cara de Cuspe que foi absolvido, especialmente depois que os jurados souberam que ele tava pescando, antes do júri, com o Fila Bóia que era a vítima! E, agora, esse do Quebra Salto.
O Quebra Salto é um desses caboclos com um parafuso solto na cabeça! Um bom sujeito… até o segundo copo! O caboclo ia nas festas, sempre com um trocado reservado pra poder pagar duas latinhas para alguma morena. Se não conseguia, gastava o dinheiro todo com bebida pra ele mesmo e ia dançar sozinho. Daí, quando passava uma morena com salto, ele chutava bem no salto e quebrava o salto do sapato da menina que, normalmente caía. E ele fazia isso com uma imensa habilidade! Imagina: salão escuro, todo mundo dançando, uns encostados nos outros, o caboclo da um chute direto no salto, o salto quebra, a menina normalmente cai e ele some, misturado no pessoal dançando, que ninguém nem percebe o que aconteceu.
O problema é que o abestado do caboclo fica se gabando no dia seguinte, tomando uma cervejinha no açougue do Retalho!
Pois foi numa dessas que houve o entrevero! Tava o Quebra Salto se gabando, e levantou do fundo do açougue, o Polegada, completamente porre. Pegou um taco da mesa de bilhar e sem aviso quebrou o taco na cabeça do Quebra Salto. Meio tonto, o Quebra Salto levantou, defendeu com o braço mais duas ou três pauladas. O Retalho saiu de trás do balcão pra apartar (ou “desapartar”, como dizem aqui no Marajó), mas veio com a faca de açougueiro na mão. O Quebra Salto pegou a faca e deu uma furada nas costelas do Polegada, que a faca ficou fincada.
— Deusulivre, o Quebra Salto matou o Polegada! — gritava o Retalho, enquanto o Quebra Salto pulou no rio e o Polegada cambaleava gritando: “Ele me matou! Ele me matou!”
O Manobra saiu ligeiro pra buscar a ambulância, mas o Retalho e o Descarrega colocaram o Polegada no carrinho de mão e chegaram no hospital antes do Manobra, que duas vezes saiu pro lado errado, demorando a dar-se conta, numa luta que seria até engraçada, consigo mesmo, pra tentar correr e segurar o copo de cerveja que não deixava cair da sua mão.
Naquela noite mesmo, o Polegada foi levado para o Navio que passa às 20 horas pra ser levado para um hospital na capital. Depois, não se teve mais notícia. Tem todo tipo de boato. Que morreu no hospital; que morreu no caminho; que os parentes buscaram o Polegada no hospital de Belém pra morrer em casa, no interior do Marajó… A única coisa certa é que não se viu mais o Polegada.
O Promotor denunciou o Quebra Salto por homicídio consumado, mas acabou indo a júri por tentativa de homicídio, porque ninguém conseguiu achar o corpo do Polegada, nem saber onde tava sepultado.
O Promotor era um guri novo, recém saído dos cueiros, como a gente fala lá no Rio Grande! Esperneou demais quando decidi que não seria homicídio consumado. Mas não recorreu, porque era promotor substituto e queria fazer o júri antes de ser transferido. Já o Quebra Salto foi logo preso e depois eu o soltei com a condição de que não frequentasse mais nenhuma festa e que não tomasse qualquer bebida alcoólica. Pois o Quebra Salto, sem poder mais beber nem ir em festas, acabou entrando em uma igreja evangélica, e disse-se convertido! Voltou a ser Eleotério Raimundo.
A igreja, tratando o Eleotério, ex-Quebra Salto como um exemplo, cootizou-se e contratou um advogado da capital, dispensando a advogada da prefeitura que fazia as vezes de Defensora Pública. O advogado, um gordinho baixo, com cara de poucos amigos, transformou-se no júri! Não… não é uma figura de linguagem: o advogado transformou-se mesmo!
Pensa: o ato houve no açougue do Retalho, de dia, com testemunhas! O próprio Retalho e o Descarrega levaram o Polegada. O Manobra também viu… quer dizer: o Manobra tava presente, mas considerando que nem mesmo conseguiu achar o caminho do hospital, acho que não deve ter visto muita coisa.
Eu fiquei imaginando: o advogado vai dizer que foi legitima defesa. Pois não é que o Dr. Pinguim surpreendeu?! (Já ganhou o apelido logo na chegada, porque parecia o “Pinguim" do primeiro filme do Batman, interpretado pelo Danny DeVito)! Pois é: depois que o promotor fez toda a sua acusação, o Dr. Pinguim foi devagarinho até o centro do salão e, quando foi falar… começou a contorcer todo!
Vendo aquilo:
— Hein? (escapou!).
O Goela deu um passo pra trás. Olhei logo pra D. Boneca e ela, que estava pertinho de mim, colocou a mão no meu ombro, como que pra evitar qualquer atitude minha, abaixou-se no meu ouvido e disse:
— Ta encostando um caboclo!
Pois foi aí que eu quase não acreditei, quando ouvi:
— … não foi o Quebra Salto quem ME furou… não foi ele…
Ou não tava entendendo direito, ou o Dr. Pinguim havia “incorporado" o Polegada pra convencer aos jurados que o Quebra Salto era inocente!
…
Bem, posso dizer que foi algo realmente inusitado! O resultado é que o Eleotério, ex Quebra Salto foi absolvido! Pois o Dr. Pinguim (ou o Polegada, sei lá!) conseguiu convencer que o Eleotério era inocente!
O promotor, esperneou, gritou e reclamou, dizendo que aquilo era nulo, porque, se era o Polegada incorporado, não poderia falar depois do promotor, e que ele mesmo, promotor, tinha direito de interrogar a vítima incorporada!
Enfim, foi um rebuliço! Mas o caso é que valeu o júri, o promotor foi designado para substituir em outra cidade e o promotor que veio não esteve a fim de recorrer.
…
O corpo do Polegada? Sim, foi achado! Vivinho da silva, depois que a benzedeira pra onde a família dele levou quando o pegaram no hospital de Belém, deu ele por curado. O Dr. Pinguim virou o advogado oficial da igreja, e voltou outras vezes no Marajó, para outros casos! Ganhou a fama de defensor de causas impossíveis e, quando perguntado como pode incorporar o Polegada se ele não tinha morrido, ele respondeu que foi quando o Polegada tava desvivido e a alma passeado, sem saber se voltava pro corpo ou ia pro beleléu. O Polegada não podia desmentir, porque tava tão porre no dia, que disse que não lembrava de nada.
…
O Eleotério? Ah, voltou a ser o Quebra Salto, quando foi expulso da igreja… é que durante os cultos, aconteceu de várias mulheres caírem, com o salto quebrado!
Por Luís Augusto Menna Barreto