O Surdo, os Gêmeos e Seu Raimundo Duas Vezes
“Teu nome?”
Ele ficou paradinho olhando pra mim. E acho que posso apostar que tinha um quase sorriso na boca, mas não dava pra saber direito.
“Teu nome?” Repeti, já com a testa franzida!
Olhar encarando-me e aquele quase sorriso. Não tenho bem certeza se o quase sorriso deixava-me mais fulo que o olhar-de-peixe-morto, mas os dois juntos eu não tinha dúvida que estavam conseguindo irritar-me.
“TEU NOME?” Assim, falando alto, tipo letras maiúsculas mesmo!
Nadinhas. Silêncio. Na sala de audiências todos estão tensos. Conhecem-me há tempo e sabem que estou a ponto de um rompante de irritação. O Barganha, que tava digitando, fica com as mão paradas no ar, imóveis, pouco acima do teclado do computador, pronto para digitar algo, qualquer coisa que seja, torcendo para eu ditar alguma coisa e acabar com a tensão, mas, enquanto não dito, as mãos ficam suspensas, sem coragem sequer de encostar nas teclas, com medo que o contato faça barulho e eu dirija a ele minha irritação com o peixe-morto que continua lá, olhando pra mim, com aquele quase sorriso!
Uma voz perto do meu ouvido:
“Ele é surdo, doutor”.
“Ãhn?”
Pois é. O caboclo era surdo! Foi uma audiência difícil. Não levo muito jeito com surdos. Desde sempre! Lembro quando eu era adolescente e meu pai já velhinho (e tô falando de 90 anos de idade - é, sou bem temporão), ele foi ficando surdo e cada vez mais eu sentia dificuldades.
E tenho certeza que eu sempre usava o timbre errado perto dele. Porque tinha coisas que ele entendia e outras não! Às vezes, com o pai sentado na poltrona vermelha, com o jornal na mão, a gente falava alguma coisa baixinho, para ele não ouvir, e ele ouvia! Outras vezes, a gente falava uma bandalheira qualquer, até mais alto, pra provocar! E a mãe, da cozinha, gritava pro pai, como que apelando pra autoridade dele pra corrigir a gente:
“Tu estás ouvindo o que esse guri tá dizendo?!”
E o pai abaixava o jornal da frente do rosto e respondia sorrindo:
“Não… graças à Deus!”
Pois é, nunca me dei bem com surdos.
Tive de suspender a audiência por mais de uma hora até achar o "Come Vento”. O Come Vento era um professor que estava habilitado com o LIBRAS - Linguagem Brasileira de Sinais. O único da cidade que estava habilitado. Há anos era somente ele quem trabalhava, em aula, com surdos-mudos (que, hoje, parece que o “politicamente correto” é chamar apenas de surdos, porque a mudez, no mais das vezes é reflexo de não ouvirem sons e, então, não terem aprendido a emiti-los, embora tenham capacidade física de produzi-los). Mas, enfim, era o único da cidade e, como disse, há anos trabalhava com surdos(-mudos)! Ganhou o apelido de “Come Vento” porque, enquanto fazia os sinais, ia falando as palavras sem emitir som! Daí, enquanto fazia os movimentos, parecia mesmo que estava comendo vento!
Virou o “Professor Come Vento”.
Pois o Come Vento chegou, realizamos a audiência e acabei substituindo a prisão preventiva por várias medidas cautelares diversas de prisão, como, por exemplo, proibi de frequentar bares e boates, determinei que não deixasse a cidade e que se recolhesse todos os dias em casa a partir de 22 horas até 6 horas, entre outras. Não sei bem se ele merecia a liberdade, ou se acabei ficando com pena. Mas depois que eu descobri que era surdo, já não impliquei mais com o meio sorriso e o olhar-de-peixe-morto.
Mas, como eu dou azar com surdos, aconteceu: uma quarta-feira à noite, eu estava com um grande amigo que era juiz de uma cidade vizinha (que fica há duas horas de distancia de viagem de voadeira) e ele iria para Belém. Como o navio em que ele iria para Belém não encostava na cidade dele, ele veio até a minha (ambas no Marajó), para pegar o navio que passava todos os dias entre 22 e 23 horas. Pois naquele dia, como a maré estava contra (é, descobri no Marajó, que rio tem maré!) o navio encostou quase 23 horas. Meu amigo foi um dos primeiros a entrar no navio, equilibrando-se na prancha que liga o trapiche municipal ao navio.
Assim que ele entrou, eu me virei e comecei a ir embora na direção contrária ao “empurra-empurra” para entrar navio. Pois quem esbarra em mim?
Isso, o surdo da audiência! Como no tumulto eu não soube quem tinha esbarrado em quem, se de fato ele em mim ou eu nele, meio que de forma automática, falei:
“Opa, desculpa!”
“Tem nada não, doutor!”
Eu sorri, por ele haver também sido educado e fui saindo…
“Hein?! ‘Tem nada não, doutor’?”
Tava formado o rebu! Olhei pra trás e já o tinha perdido de vista no tumulto da entrada do navio. Olhei pro lado da venda de passagens e lá estavam dois terços do efetivo da polícia militar da cidade: 2 PM’s! Chamei logo os dois e disse que o navio não poderia sair sem a gente pegar o pilantra do falso surdo! O Continência e o Aspirante (os policiais, como eram conhecidos na cidade) já de cacetete na mão para impor respeito, foram abrindo caminho e o pessoal se afastando com medo! Entraram no navio, avisaram para um dos marinheiros pra não desatracar e começaram a busca. Entrei atrás e fui com eles. Uns três minutos procurando e achei o falso surdo armando a rede bem tranquilo. Apontei pra ele e os policiais foram pegando com aquela delicadeza toda!
“Ai! Me larga! Não fiz nada!”
“Ah, bonito, né? Pois agora tu vais é passar uma temporada com o Sonrisal lá o Xadrez, seu esperto!”
“Mas doutor, é um engano! Eu…”
Não sei se eu escutei ou imaginei, mas o som do tapa na orelha que o falso surdo levou do Continência, pareceu ter feito “PLAFT”… assim, em maiúsculas.
Na mesma hora, voltou a ficar surdo, porque não falou mais nada enquanto era levado pelos policiais.
Imagina só: eram mais de 22 horas e o malandro tava entrando no navio para sair da cidade e todo falante! Ele só não contava era comigo ali no trapiche.
Esperei o navio sair e fui até a delegacia. Estava louco pra falar com o surdo e ver se agora ele ia entender ou ia ficar me olhando com aquele olhar-de-peixe-morto!
Quando to entrando no portão da delegacia, o Fechadura veio ao meu encontro:
“Doutor, tem um probleminha…” o Fechadura disse-me meio constrangido.
“Que problema, Fechadura? Só não vais dizer que tá faltando cela, porque até onde eu sei, só o Sonrisal tá preso. O Brédi-Piti eu soltei ontem!” E eu não estava entendendo porque o surdo estava ali na entrada da delegacia, sem ninguém para vigiar!
Nem esperei o Fechadura explicar, e fui entrando na delegacia, porque tava louco pra falar com o surdo:
“E aí? Vais dizer que ficaste surdo de novo?”, perguntei.
“Ahn…. huuummm…ããããhhh…”
“Mas tu és muito cara de pau, mesmo! Olha, Fechadura, tá surdo de novo!”
“Doutor… ele é surdo!”
“Tá, Fechadura, só se era um irmão gêmeo dele no trapiche!”, eu brinquei!
“Era, doutor”.
“Hein?”
“Era, doutor! Veio de Belém pra visitar ele. São gêmeos. O que fala tá na cela, doutor. Ia voltar pra Belém e o surdo não foi no trapiche junto, porque já tinha passado do horário que o senhor determinou, doutor!”
…
Dá pra imaginar?!
Não levo jeito com surdos! É sina!
Daí que tempos depois, quando o Seu Raimundo Duas Vezes chegou no fórum e pediu pra falar comigo, eu já me assustei.
O Seu Raimundo Duas Vezes não era surdo de nascença, e falava muito bem, de mudo não tinha nada. Era como meu pai: a velhice foi castigando aos poucos sua audição, só que numa velocidade maior. Aos sessenta e cinco anos, só entendia o que era gritado para ele. E mesmo assim, normalmente, tinha que falar duas vezes pro Seu Raimundo!
Pois ele queria uma explicação de como estava o processo de aposentadoria dele contra o INSS. E agora? Como eu ia conseguir explicar pra ele que dependia do retorno da carta precatória de intimação da sentença pro INSS, que remetemos para Belém?
Fiz um esforço. Depois da mancada com os gêmeos, eu me sentia quase na obrigação de ter paciência e atender bem Seu Raimundo Duas Vezes. Levei-o ao gabinete e mentalizei que teria paciência. E comecei a explicar:
“Seu Raimundo, é o seguinte: explica, explica, explica, explica, explica, explica………..”
Fiquei uns bons 4 minutos explicando a situação e ele me olhando com cara de quem presta atenção e balançando a cabeça pra cima e pra baixo, muito serio, nos movimentos universais de concordância e entendimento!
“……. explica, explica, explica, explica….. e é isso, Seu Raimundo!” Olhei pra ele com alguma esperança!
“Doutor… não ouvi direito… o senhor poderia me dizer de novo?”
Socorro. Respira. Paciência. Lembra da mancada com os gêmeos… (tudo isso eu estava dizendo pra mim mesmo).
Recuperei a calma e comecei de novo, desta vez gritando:
“SEU RAIMUNDO, É O SEGUINTE: EXPLICA, EXPLICA, EXPLICA, EXPLICA, EXPLICA, EXPLICA………”
Agora, Seu Raimundo Duas Vezes estava sorrindo. Veio um certo alivio.
“…….. EXPLICA, EXPLICA, EXPLICA, EXPLICA……… E É ISSO SEU RAIMUNDO!”
“Doutor, teve um ou outra coisinha que não ouvi direito… poderia me dizer de novo?”
Ai, ai, ai….
Pense num desânimo, misturado com desespero e com alguma vontade de esgoelar o Seu Raimundo!
Mas foi aí que me veio a idéia iluminada!
Peguei seu Raimundo pela mão, levei até a mesa de audiências, fiz ele sentar ao meu lado, peguei um monte de papel e um pincel atômico: eu escreveria tudo para Seu Raimundo! Que solução! Eu devia ter pensado nisso já na audiência do primeiro surdo! Mas enfim, o que passou passou e agora eu tinha a solução. E, para não correr riscos, peguei o pincel atômico e comecei a escrever em letras muito grandes. Cada folha que eu ia escrevendo, eu ia passando para o Seu Raimundo, que pegava o papel e olhava com muita atenção!
No fim das contas, escrevi perto de sessenta folhas, minha mão já estava doendo!
Quando terminei, nem me preocupei em tentar falar nada. Olhei para Seu Raimundo Duas Vezes e fiz um sinal de positivo pra ele!
Ele virou pra mim, sorrindo:
“Doutor… posso pedir uma coisa?”
Fiz outro sinal de positivo, como quem diz: “Claro, Seu Raimundo, peça!"
“O senhor poderia ler pra mim? É que nunca aprendi a ler direito, doutor…”
…
Não… não vou contar o fim da história. Só vou dizer 6 palavras:
Chá de camomila! Suco de maracujá!
Por Luís Augusto Menna Barreto