O Baguda, o China, a Dívida e o Leilão
— Alô…? Doutor…?
A ligação estava péssima! Eu estava, ainda, no navio, tentando chegar na comarca, mas deu prego. Um dos dois motores levou farelo, e então, a viagem que seria de umas dez horas já estava com quase quinze.
No trajeto entre Belém e a comarca, no Marajó, tem alguns pontos onde a gente consegue um “resto" de sinal de celular. Daí que eu estava tentando ligar para o Fórum para avisar do meu atraso e a Tutela atendeu.
— Doutor, o Baguda veio aqui ver a decisão e não entendeu nada!
— Traduz para ele, Tutela.
— Égua, Doutor… de rocha, também não entendi muito.
— Pede para o Goela traduzir para ele, tutela!
— O Goela já vai sair de rabeta pro interior, fazer intimação, doutor. E o Baguda foi bem ali.
“Bem ali” é aquele lugar indecifrável mas que simplesmente faz parte do cotidiano Marajoara, em que todos (menos eu!) entendem exatamente o que quer dizer e, muitas vezes, até quanto tempo o caboclo vai levar para voltar!
— Fala para o Goela deixar escrito, Tutela. Ou pede para o Barganha.
— O Barganha tá pra…..
Foi-se o sinal.
O caso era que o Baguda havia entrado com um processo contra o China. O processo não tinha muito cabimento, e a Dra. Quaresma somente deu entrada porque, sendo a advogada da Prefeitura, quando ela ia na cidade duas vezes por mês, na falta do que fazer, atendia como se fosse defensora pública. O Baguda deve ter perturbado muito a paciência da Dra. Quaresma para ela entrar com o processo, porque ela não era de dar entrada em coisas do tipo:
O Baguda, para escapar de ser preso por pensão de alimentos do filho que fez com a Virada, emprestou do China para pagar em dois dias, quatrocentos e cinquenta reais que o China iria usar para pagar a conta que já estava ficando grande no açougue do Retalho. No dia combinado, o Baguda não tinha o dinheiro. Daí, o Baguda, sem ter mais para quem pedir, foi na loja do Mariposa e pegou fiado um motor rabudinho* por quatrocentos reais, e queria dar em pagamento ao China. O China não aceitou, não precisava de motor. Queria o dinheiro, e estava cobrando do Baguda.
O processo do Baguda contra o China era para que “a Justiça” obrigasse o China a aceitar o motor pela dívida, e ainda que o China devolvesse mais cinquenta reais que o Baguda precisava para dar para o Mariposa, para rolar a dívida do rabudinho que pegou fiado.
Indeferi:
“Vistos os autos.
Indefiro o pedido de tutela de urgência, porquanto não vislumbro a verossimilhança do direito alegado, uma vez que, não havendo qualquer prova documental, e tendo sido o negócio jurídico de mútuo, não se pode obrigar o credor a receber de modo diverso do que fora contratado, ainda que verbalmente.
Marque-se a audiência.
Cite-se o demandado. Intime-se o autor.”
Esse despacho que o Baguda não entendeu e, pelo jeito, a Tutela não soube explicar.
Fiquei torcendo para que alguém pudesse esclarecer a decisão para o Baguda, e voltei para minha rede para aproveitar o balanço do navio que, com apenas um motor empurrando, estava sendo ultrapassado até por mururé!
Já era noite quando, depois da curva, avistamos as luzes da cidade, particularmente iluminada por conta da festa da padroeira! Era dia de bingo na frente da igreja, e a rua inteira estava tomada por mesas e cadeiras com praticamente toda a cidade jogando no bingo. De tempos em tempos, entre as rodadas do bingo, ocorrem leilões onde são leiloados bens que a comunidade doa para a igreja, ou outros que não são doados, mas que a igreja fica com um percentual da venda.
No caminho do trapiche até o pequeno quarto onde eu morava na cidade, passei pelo bingo e estavam leiloando justamente um motor rabudinho.
“Ouvi 300? 300 reais? Vou vender por 300 reais?”
Murmurinho daqui e dali, ninguém aumentando o preço, e eu vi o China, chegando do outro lado da rua, na companhia da Jaguatirica, que logo já sentou em uma mesa de amigos, e já estava pegando uma cartela e recebendo uma latinha de cerveja. O China, que já chegou com a latinha na mão, parecia já ter tomado umas. Subiu no canteiro da rua e gritou meio porre:
— Quinhentos, seja lá o que for que estão vendendo!
Era isso mesmo. Ele nem sabia o que era!
“500! Tenho quinhentos do amigo China, um rabudinho novo em folha! Ouvi 550? Alguém para 550?”
A Jaguatirica logo deu o ralho:
— Tu tá doido, China? De onde tu vais tirar quinhentos pra um rabudinho, que nem um casco velho tu tens pra colocar motor!
— Só pra dar uma animada, que alguém já sobe o preço! — Falou sorrindo, já animado das cervejas que havia tomado no Pretão.
O locutor continuava:
“550? Alguém para 550? Dou-lhe uma!”
Enquanto eu passava devagar, puxando minha pequena mala, o China estava alegre e rindo…
“550? Ninguém? Vamos pessoal, um rabudinho de primeira! Alguém? Dou-lhe duas por 500.”
O China pareceu ficar preocupado. A Jaguatirica mandou um olhar que dizia “em casa a gente conversa”.
“Dou-lhe três! Vendido para o China por 500!”
Gritos dos amigos em volta, festa pela compra, e passei com minha mala!
Estava cansado da viagem, e da feita que cheguei, caí na cama e dormi.
No dia seguinte, pedi logo para chamarem o Baguda, para eu poder explicar o despacho.
— Não precisa mais, doutor, já está tudo resolvido! Paguei o China e dei o dinheiro da entrada para o Mariposa, já, como o senhor mandou.
— Hein? Como assim, eu mandei?
— Tá aqui no papel que o senhor mandou o Goela me dar, doutor! Óh…
…
Quem colocou o rabudinho em leilão, óbvio, foi o Baguda! O que aconteceu no bingo-leilão, foi que o China, não tendo o dinheiro para pagar o Rabudinho, começou a arrecadar com os amigos que estavam no bingo! Conseguiu juntar entre 11 amigos, o dinheiro e pagou na hora o leilão, especialmente porque quem arrecadava o dinheiro do leilão era o Tonelada, que vocês já conhecem de outras crônicas! O Baguda pegou o dinheiro, descontada a taxa da igreja, e pagou o dinheiro do China lá mesmo, que devolveu o dinheiro na mesma hora para os amigos.
Ainda durante o bingo, o China anunciou o rabudinho nos grupos de whatsapp que participava, e acabou achando comprador do motor por seiscentos reais; separou o dinheiro para pagar o Retalho, e ainda tomou cem reais em cerveja com a Jaguatirica, jogando bingo, e proibido de abrir a boca em outro leilão.
…
Sobre o papel que o Baguda mostrou-me? Era a tradução do meu despacho, que o Goela deixou escrito para o Baguda, em papel timbrado e tudo:
"Dei uma olhada 'nos teus papel'.
Me admiro de ti, fazer um pedido desses.
Sal.
Não me vem com pavulagem que o combinado não sai caro.
Te puxa e dá teus pulos.
Juiz"
Luís Augusto Menna Barreto
7 de dezembro de 2024
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