sexta-feira, 31 de maio de 2019

bora cronicar - Hoje Tem Camila

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Hoje Tem Camila

Eu já começo meu dia tenso… 
Eu sei desde a hora que acordo. Sabe quando tu acordas e tens certeza que tens que fazer alguma coisa…? Não, não uma coisa aleatória; algo que você TEM que fazer. 
Eu Lembro que quando era criança, e estudava à tarde na Escola Estadual de 1º Grau Estado do Espírito Santo, na minha bela, saudosa, distante, inesquecível, querida e lendária Santo Antônio da Patrulha (até a terceira série, a gente estudava à tarde. Da quarta série em diante, era pela parte da manhã), eu, como toda criança, assim que acordava queria pular da cama e sair correndo pra rua, achar os amigos e brincar. Mas daí… bem, daí vinha a mãe, virava um criado mudo com gaveta amarela que tinha ao lado da minha cama, colocava o caderno de caligrafia (talvez tu só saibas o que seja isso se tiveres mais de 30 anos, então, se tu não sabes, fica feliz) em cima do criado mudo e eu só poderia sair pra rua pra me reunir com o Cuca e o Christian, depois que eu fizesse a tarefa de caligrafia. 
Qual o problema? Bah!, o problema é que, toda aquela disposição, toda aquela energia, toda aquela vontade de conquistar o mundo sendo um piloto de nave espacial igual da do Buck Rogers, ou ser um soldado com um cachorro bacana igual o Rin Tim Tim, ou correr com um carro pelas curvas de Santos como Roberto Carlos, abatia-se sobre mim uma preguiça invencível no instante em que eu via o caderno de caligrafia. 
Acho que a tarefa levaria cerca de uns cinco minutos se fosse feita com dedicação, concentração e afinco; talvez uns dez minutos, se fosse feita com alguma displicência… 
… pois eu levava entre meia hora e quarenta minutos! E depois, passava o resto da manhã culpando a maldita tarefa de caligrafia, porque nem deu tempo pra nada. A gente mal teve tempo de fazer um cipó com os galhos do chorão ao lado do quintal da casa do Christian, mal teve tempo de andar de carrinho de rolimã feito pelo “Vô Nilto” (avô do Cuca, mas do qual éramos todos “netos"), mal teve tempo de jogar bolinha de gude na frente da casa do Cuca. Mal a gente fez isso e já ouvia a D. Ruth gritar: “Chriiiiiis-tiiiiii-aaaaaaan”, e lá se mandava o Christian pra casa sem nem dizer tchau (D. Ruth impunha respeito em toda a gurizada da rua), ou logo a tia Jussara, mãe do Cuca, mandava ele entrar pra se arrumar pra escola… daí, o tempo tinha passado e pronto. Culpa do quê? Do caderno de caligrafia, claro! 
Tu estás te perguntando se a mãe também não gritava chamando por mim? Pois sabe que não. Acho que ela sabia que logo em seguida à D. Ruth chamar o Christian, eu estaria de volta. 
Mas, o fato é que aquele caderno de caligrafia, meio que me traumatizou.
Daí, eu fui crescendo e meu trauma passou a ser ouvir a musiquinha do Domingão do Faustão (“… do tempo que sapato novo era sapatão…”). Não tenho nada contra, muito vi o programa do Faustão, no tempo que nossa TV preto e branco só pegava “o canal 12”. O problema é que a musiquinha do Faustão, anunciava o domingo escoando-se! Daí pra diante, o que era pra ser diversão, era obrigação. A gente tinha que fazer alguma coisa, inventar alguma brincadeira, jogar alguma coisa, porque o domingo estava acabando! Depois era Trapalhões e a gente já tinha que estar de banho tomado. Quando o Show da Vida começava, a gente tinha que estar na cama! 
Depois, o tempo foi passando, e os traumas meio que foram sendo superados! 
… era o que eu pensava!
Atualmente, tem dias que eu já acordo tenso. Eu abro os olhos, o sol paraense está despontando pela sacada, o ar da manhã ainda está agradável, e eu quase não aproveito. Assim que abro os olhos eu lembro! Então, passo o dia sabendo que vai chegar a hora! 
No trabalho, as horas voam! Daí, como neste exato momento (são agora, enquanto escrevo, 16h51min), eu já penso que tenho que arrumar tudo pra sair. Vou colocar as coisas na mochila, separar o que não deu tempo de terminar, fechar o gabinete, ir até a garagem sabendo que sou o último a deixar o fórum (o expediente acabou faz tempo), vou pegar o carro, ligar o podcast no programa Sala de Redação de ontem, e saber que, a cada minuto que passa, a cada metro que avanço no trânsito da BR que liga Ananindeua até Belém, estarei mais perto… mais perto…
Chego, estaciono na minha vaga no prédio, subo, dou atenção pro Messi que pula nas minhas pernas, pergunto como foi o dia do João, tento enrolar um pouco e lá vem a Ana, sem qualquer piedade: "tá na hora, desce!”
Pego a escada. 10 andares. Chego tenso espiando e lá vem:
“Ooooooi Luís”! Sim, é ela: lépida, faceira, saltitante e desesperadoramente pontual!
Aff… sim, hoje é dia de Camila

Luís Augusto Menna Barreto

31.5.2019

quinta-feira, 30 de maio de 2019

bora cronicar - Hoje Não Tem Camila

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Hoje Não Tem Camila

Ah… como quarta-feira é bom…
Ali, discreta, bem no meio do calendário, quietinha entre a terça e a quinta. É tudo de bom!
Tá, eu sei… tu, caro leitor, deves estar pensando: e a sexta-feira?! E todo o papo de “sextou”? Ah, desculpa aí, mas dos dias úteis, eu gosto mesmo é da segunda e da quarta. Isso, tu não leste mal: da segunda. SE-GUN-DA!
Por quê?
Ora, por quê! Porque não tem Camila!
Seguinte: terça, quinta e sexta é dia de Camila! Segunda e quarta não. Entendeste?!
Tá, vou explicar!
O problema é que todo o ano, eu tenho feito aniversário! Sério mesmo: todo ano, lá vem o tal 20 de março. Não importa o que eu faça, não importa se o ano tem 365 ou 366 dias, não importa! Não tem botox que dê jeito, entra ano e sai ano, o 20 de março aparece! E tome mais um ano!
Todo ano. 
Sem piedade.
Daí, que por culpa disso (aniversários), algumas coisas começam a encrencar! Eu sempre fui uma pessoa muito ativa, pratiquei tudo que é esporte e achava que o efeito dos anos jamais se abateria sobre mim. Mas ah!… lá veio ele de novo: 20 de março! Então, em uma bela tarde de verão, estava eu na quadra de vôlei do prédio, quando uma bola veio baixa. Fiz o que diz o manual: enquadrei o corpo, fiz a base com as pernas, estiquei os braços com os pulsos bem unidos e creck! Opa, peraí! Creck? Não era pra ser manchete? 
Era, mas o que aconteceu foi: creck! Simplesmente travou tudo e eu realmente não conseguia mover o tronco nem pra frente nem pra trás, nem pra cima nem pra baixo! Eu não consegui sequer alcançar os cadarços. Foi algo francamente assustador! Nunca imaginei algo assim. Mas aconteceu. 
Fiquei uns dois dias travado assim. Foi necessário até mesmo algumas injeções de sei lá o quê pra destravar, e outras pra parar de doer. Daí, que foi inevitável a consulta médica, exames e… hérnia de disco! Isso. Duas! 
Uma vez diagnosticado, fiquei relativamente tranquilo. Pensei eu, que seria seguir um tratamento e tudo bem. Rá!… ledo engano!
— …não tem cura. — E ele disse assim, tranquilo, com que fala “tá oito e noventa o quilo”!
— Como assim?
— Não tem cura.
Nesse momento, eu já estava pensando na carta que eu deixaria pro João, pensando em organizar meus gibis pra deixar de herança, em correr e despedir-me dos amigos… essas coisas que nós, homens, com nossa incrível “coragem de hospital” pensamos!
Foi então que o médico explicou que não tem cura, e o tratamento dos sintomas seria à base de ginástica postural e reforço muscular. Então, eu, que jamais havia ido a uma academia, conheci a Camila! Pois é. Lembram da história do paletó que havia emagrecido e eu não entrava nele? Lembram que quando a Ana foi ver o preço de um novo, decidiu que quem emagreceria seria eu; e logo ela ligou pra Camila? Pois é: ESSA Camila!
Lá se vão mais de 5 anos em que pelo menos 3 dias por semana, é “Dia de Camila”. 
E a Camila tem muitos problemas: ela nunca falta! Dá pra imaginar? Uma Personal que não falta nunca. Nem um pneu furado, uma indigestãozinha, um problema com o filho na escola… nada! Até o filho, o Murilo, é um exemplo de guri e nunca dá problema! Já tentei convencer o guri a aprontar alguma, pra Camila ser chamada na direção e perder o horário ou algo assim, mas não funcionou! 
E quer saber outra coisa? Ela não se atrasa! Nem um minuto! Quando chega na hora da academia, que faço no próprio prédio onde moro, eu desço devagar… 10 andares pela escada, porque acho que pelo elevador é muito traumático, chega muito rápido na academia. Então, vou pela escada. Daí, quando saio da escada e vejo a porta da academia, espio… às vezes eu não vejo a Camila… começo a ter esperança… chegou perto, e nada… vejo o Pedro fazendo algum exercício, outro morador, uma outra Personal que cuida de outros moradores… e nada de Camila… Teve dias que até entrei sorrindo, lépido e faceiro na academia, porque não a vi e… 
— Oooooi Luís! 
Bah! Esse “oooooi" com o “o" esticado, é ela! Minhas esperanças vão pelo ralo! O peso da preguiça abate-se sobre meus ombros! Eu faço minha cara mais desanimada… e nada adianta! Lá tá ela, toda saltitante, colocando Nando Reis, Capital Inicial e Ira!, pra tocar durante o treino! Até música de qualidade ela consegue escolher para meu desespero!
Daí, que, atualmente, eu treino terças, quintas e sextas. 
Minha dor nas costas? Nunca mais tive! Mas pago um preço enorme por isso:
Passei a gostar de segundas-feiras!

Luís Augusto Menna Barreto

30.5.2019

quarta-feira, 29 de maio de 2019

bora cronicar - Epitáfio

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Epitáfio

Foi encontrado na fronha do travesseiro... era um papel velho e sujo. Escrito à lápis. 
A letra quase ilegível e com tantos erros que o Padre levou quase uma semana para traduzir:

“Eu me senti sempre à vontade onde estava. Os anos foram passando, e vivi a vida sem peso. O inventário de todos os bens que amealhei em vida (tantos!), eu sabia de cor; nunca confiei a tarefa a nenhum contador! Nenhum contador saberia somar os abraços, sorrisos e bons dias, que formaram minha imensa fortuna! 
Aprendi que quanto mais eu dividia, mais multiplicavam-se estes meus bens! No fim, não havia angústia sobre quem protegeria meu legado, nem preocupação se iriam dilapida-lo... porque diferente de muitos, eu vou sim, levar esse tesouro comigo! Tudo que eu tinha, além do tesouro que levo, cabia em uma mochila, eu podia carregar em minhas mãos...! E isso me fez livre! Devolvo-me ao Criador levando talentos multiplicados! Estou pronto para prestar minhas contas! Parto da vida, rico! Como rico, sempre vivi!”
                                                      (Mochila)

Fizeram uma placa. Virou seu epitáfio.

Luís Augusto Menna Barreto

29.5.2019

terça-feira, 28 de maio de 2019

bora cronicar - Um Pequeno Conto Sobre o que Realmente Importa

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Um Pequeno Conto Sobre o que Realmente Importa

Quando o motorista notou, Álvaro já estava curvado sobre o banco traseiro do Maserati sedã Ghibli, que havia chegado da Itália, personalizado por dentro, já com as suas iniciais gravadas no couro dos bancos. Tinha 48 anos, e achava-se em plena forma. Acabara de comprar uma companhia aérea com vôos em 32 países, que passava por dificuldades financeiras. Iria “reparti-la” em várias pequenas partes e obteria um lucro acima de seiscentos por cento. Era o que ele fazia. 
O escritório nos fundos do supermercado, bem acima da entrada para o depósito, oferecia a visão de todos os 12 corredores da grande loja. Havia sempre uma nuvem de fumaça e, ainda que o ar condicionado estivesse ligado, de alguma forma ele sempre suava. Dificilmente tirava o cigarro da boca e tinha a habilidade de manter a cinza sem cair, até quase metade do cigarro. Espremia os olhos após soltar a fumaça de cada tragada. Desde às 6h da manhã de todos os dias, Plauto, um homem baixo e visivelmente acima do peso, afundava-se entre papéis de pedidos, remessas, notas fiscais, duplicatas, telefonemas, negociações com fornecedores e, acima de tudo, contando dinheiro. Mas Rosa, a sua secretária encontrou-o com o rosto afundado nos papeis em cima da sua mesa e teve dificuldade mesmo para tentar levantar sua cabeça e escora-la na poltrona, antes de gritar para que alguém ligasse para uma ambulância. Tinha 54 anos.
Ariovaldo não sabia sua idade. Deitado na rede atada por entre as árvores na praça daquela pequena cidade do Marajó, todos o cumprimentavam. Por isso, quando Marcela, que todos chamavam de “Telegrama" passou a caminho da pequena agência dos correios em frente à praça, não recebeu resposta de Ariovaldo (que todos chamavam de “Mochila”), ela se preocupou e foi até ele. Em seguida, com um grito, um enfermeiro que fumava em frente ao Hospital Municipal, do outro lado da praça, veio correndo e foi auxiliado pelo motorista da ambulância para leva-lo até a emergência.
Assim que chegou à emergência daquele seleto hospital e Álvaro começou a ser atendido em procedimentos de emergência, o motorista ligou para o secretário, que em seguida ligou para a ex-esposa de Álvaro que estava em Madri, com o atual companheiro; deixou recado na caixa posta da filha que morava em San Diego, Califórnia, e há seis anos não vinha ao Brasil, recebendo periodicamente, os depósitos que seu pai fazia para bancar suas necessidades e seus luxos. Não conseguiu localizar o filho de Álvaro que estaria praticando snowboard em algum lugar na Europa. A notícia espalhou-se com a rapidez de uma flecha e logo as ações do grupo empresarial de Álvaro começaram a cair.
Todos olharam quando a ambulância chegou com a sirene ligada e parou bem em frente à porta do supermercado, no local destinado aos deficientes. Enfermeiros entraram correndo com uma maca e tiveram dificuldades de retirar e descer Plauto pela estreita escada que dava acesso ao escritório. Os funcionários ficaram olhando, preocupados, e a rotina no supermercado foi retomada quando o barulho da sirene perdeu-se ao longe, levando Plauto. O filho fora avisado, mas seguiu as instruções do pai: foi primeiro ao supermercado, fechou todos os valores no cofre, trancou o escritório, ligou para os fornecedores do dia e, então, dirigiu-se ao hospital.
Quando o enfermeiro e o motorista levaram o Mochila nos braços, até o posto de saúde, várias pessoas foram-se reunindo em torno, e acompanharam o trajeto. O único médico que estava na cidade, um clínico geral, empenhou-se com todo seu conhecimento, com todo seu coração e usando como podia os poucos recursos técnicos disponíveis naquele hospital de uma pequena cidadezinha no Marajó. A todo instante, o técnico de enfermagem ia e vinha, dando notícia às pessoas que mais e mais juntavam-se em frente, comentando o ocorrido.
Quando Álvaro expirou, era o motorista quem lhe fazia companhia, naquela luxuosa UTI privativa daquele maravilhoso hospital. Uma tela de LED na parede, passava a notícia na barra inferior, que as ações do grupo estavam caindo diante de rumores que o presidente do grupo não resistiria. No celular de Álvaro, chegara a mensagem de texto de sua ex-esposa: “Desejo melhoras. Mês que vem estarei no Brasil. Ligarei para seu secretário para informar as datas.” Havia uma mensagem na caixa postal, com o número da filha, que o motorista e ninguém mais no mundo poderia ouvir, porque apenas Álvaro tinha a senha de acesso aos recados. O filho saberia da morte do pai, somente onze dias depois. Passariam décadas até que os bens de Álvaro fossem dilapidados e divididos entre ex-esposa, filhos e advogados que brigavam por cada centavo. Uma vez por ano, o túmulo de Álvaro receberia flores, levadas por seu antigo motorista.
O filho de Plauto chegou ao hospital a tempo de ouvi-lo dizer que não esquecesse o carregamento de detergente e sabão em pó que chegaria à tarde, e deveria ser conferido caixa por caixa, porque na última vez, faltara uma caixa e ele estava desconfiando que o entregador que havia surrupiado uma para si. Suas últimas palavras, foram: “você tem que pegar esse desgraçado que pensa que vai me roubar!”
Ariovaldo, o “Mochila”, recebeu todo o atendimento que era possível. As enfermeiras deram-lhe banho, pentearam-lhe o cabelo e fizeram o possível para melhorar seu hálito. Estava fraco e ofegante. O clínico escolheu com cuidado as palavras e foi até a pequena multidão em frente ao hospital e disse: “acho que hoje, o Mochila vai se por junto com o sol”. E todos entenderam, que Mochila estava morrendo. E, de alguma forma, todos na cidade deram um jeito de despedir-se do Mochila, que retribuía com um sorriso. Quando saiu do correio, Marcela, a “Telegrama”, recolheu a rede que ficara atada, colocou-a na mochila de pano pendurada também na árvore e que continha todos os bens do Mochila e levou para ele. Ele sorriu satisfeito. Tinha nas mãos, e era capaz de pegar, tudo o que fora necessário por toda a sua vida. Todo o resto que lhe importava, estava recebendo de cada um dos moradores daquela pequena cidade. Quando mochila expirou, o padre havia-lhe abençoado. Houve missa, com a Igreja cheia. 
E sempre haveria flores colocadas por várias mãos, em seu túmulo.

Luís Augusto Menna Barreto
28.5.2019

segunda-feira, 27 de maio de 2019

bora cronicar - O Mariposa, o Relege e o Mochila

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O Mariposa, o Relege e o Mochila

Bem, como vocês sabem, o acidente entre o Mariposa com sua motoca nova e a ambulância, deu o que falar na cidade! Ainda mais com a briga do Mariposa, sentando no chão, sem conseguir levantar, puxando a maca pra fora da ambulância para tentar entrar e o Relege, na ambulância, puxando a maca pra dentro, para tentar sair!
Depois de algum tempo, começou a juntar gente, claro! Não sei exatamente como foi, mas há quem diga que pela manhã, ainda estavam os dois por lá, agarrados cada um na ponta da maca, sem nenhum dos dois largar. Pelo que contaram, os enfermeiros, cansados da briga, foram embora e deixaram os dois ali mesmo. O navio partiu sem esperar. E o Manobra, motorista da ambulância? Ah!, quando chegou a polícia (todo o efetivo da cidade foi movimentado, ou seja, os dois policiais), encontraram o Manobra porre… mas lá no açougue do Retalho. Daí, que não souberam dizer se no momento do acidente o Manobra estava bebido ou não. Mas quando o encontraram, estava.
Alguns pensam que o Manobra foi muito esperto. Uma vez envolvido no acidente, teria corrido para o açougue do Retalho para beber e então a polícia não poderia afirmar que no momento do acidente estaria alcoolizado. Uma jogada de mestre. Eu, em vez disso, penso que o manobra foi, simplesmente… o Manobra! Enquanto esperaria a situação resolver-se, resolveu ele ir tomar uma! 
Mas, enfim, dizem que entre os dois envolvidos, Mariposa e Relege, o caso só teve solução quando chegaram a Pequena e a Leididai, as respectivas companheiras. Não que elas tivessem acalmado os ânimos de alguém, mas, antes, porque começaram logo a brigar e os dois esqueceram a maca e começaram a apostar em quem venceria a briga! Graças à Deus, chegou a polícia e o Tonelada, com um grito só, pôs ordem em tudo!
O fato é que desde que eu havia chegado na cidade, há mais de um ano, foi a primeira vez que um acidente de trânsito chegou até o fórum! Eu até estranhei e achei que a Tutela, que faz a distribuição dos processos, havia errado na autuação, mas quando li o caso, lembrei logo do evento, porque por alguns dias, era só o que se falava na cidade. No meu primeiro almoço no bar do Seu Nonô eu soube de tudo o que se poderia saber, inclusive, que a batida mesmo, ninguém viu, à exceção de um tal Mochila! Os dois enfermeiros estavam atrás na ambulância com o Relege e não viram nada; o Mariposa afirma que não lembra nada, mas jura que estava devagar, dobrou de forma correta na saída do trapiche e estava de capacete que teria rolado até o rio com a batida, e afundado pra sempre. O Manobra… bem, o Manobra é o Manobra, não lembra nem onde coloca a chave da ambulância, motivo pelo qual, raras são as remoções de enfermos nos duzentos metros que separam o trapiche do hospital!
Mas havia uma testemunha: o tal Mochila!
Disseram que o Mochila tinha visto tudo. Estava arrolado como testemunha tanto pelo Mariposa como pelo Município, que respondia pela responsabilidade da batida com a ambulância!
Mas havia algo peculiar: nenhum dos dois colocou o endereço, mas ambos disseram que devido ao “problema" (eles que colocaram entre aspas) do Mochila, a audiência para ouvi-lo somente poderia ser na “casa” (também colocaram aspas) dele. 
Apesar de um ano em Marajó City, eu ainda não entendia todas as peculiaridades e, a cada dia, eu ainda era surpreendido. Porém, tendo visto aquele requerimento peculiar, eu não estranhei: há muitos processos de interdição em que os interditados não tem como ir até o fórum, porque simplesmente é impossível retirá-los de casa; seja porque estão ligados a algum aparelho que lhes mantem precariamente vivos, seja porque não tem qualquer condição de locomoção e as famílias não tem nenhuma forma de levá-los ao fórum. 
Daí, que no dia da audiência, antes de começar, chamei o Goela:
— Goela, sabes onde encontrar esse tal Mochila? A casa dele?
— Olha doutor, onde encontrar eu sei!
— É longe?
— Pertinho, doutor!
Ótimo! 
Na hora da audiência, presente a advogada do Município e o Mariposa, ouvi os dois, não houve acordo, e precisava ouvir a testemunha. Daí, que falei pra todos:
— Vamos até a casa da testemunha. Goeeeeeeeeeeeela!
Veio o Goela, e saímos todos.
Mal saímos do fórum, entramos na praça e o Goela parou no coreto. Havia um homem com apenas um dente, na boca, na parte de baixo, e com um saco de pano com uns cordões, usando-o como se fosse uma mochila. O Goela falou alguma coisa com o sujeito e disse:
— Taí, doutor, esse é o Mochila.
Eu não esperava por aquilo, porque no rol de testemunhas estava escrito que a testemunha “não tinha condições” de comparecer à audiência, e aquele sujeito, apesar de parecer um mendigo, aparentava perfeita saúde (à exceção da saúde bucal, obviamente)!
Arrisquei:
— O senhor que é o Ariovaldo Santana Alves?
— Quem?
— Ariovaldo Sant…
O Goela cochichou no meu ouvido, e entendi. Reformulei:
— O senhor que é o Mochila?
— Sim senhor.
— Estou vendo que o senhor está muito bem. Podemos ir no fórum?
O sujeito fechou o semblante. E ficou claramente constrangido. Balançou a cabeça negativamente. Veio o Goela de novo, cochichando:
— É melhor da casa dele, doutor.
Bem, considerando que o Goela havia dito que era perto, e o Barganha estava carregando a máquina de escrever, perguntei:
— Podemos ir na sua casa, então?
Ah!, daí foi outra história. O caboclo recuperou a alegria e espontaneidade:
— Na hora, doutor!
Então, subiu no coreto, retirou a mochila das costas, pegou uma rede no estilo “garimpeira”, atou em uma ponta e outra do coreto com uma habilidade impressionante, deitou na rede e gritou pra mim: 
— Entre, doutor, a casa é sua!
— Hein?
O caso é que o Mochila mora na rua. Não entra em nenhum lugar fechado e carrega tudo o que tem em sua mochila: uma rede, uma frigideira, uma faca e um par de meias. “Casa" para ele, é onde ata sua rede e, como ele estava perto do coreto da praça, ali foi sua casa! 
Eu não faria a audiência na praça! Tentei de tudo quanto foi jeito convencer o Mochila a entrar no fórum! Não teve acordo. O Goela me falou que nem mesmo o Tonelada havia conseguido fazer o Mochila entrar na delegacia para depor no inquérito do acidente, e o Delegado mandou o Brédi Piti ir na praça colher o depoimento do Mochila. Mas eu não me renderia. Não faria a audiência na praça! 
E não fiz!
No fim das contas, julguei o caso a favor do Mariposa, e condenei o Município a indenizar os estragos na motocicleta! Quanto ao Manobra, não houve como demonstrar que havia bebido antes do acidente, embora ninguém tivesse dúvida que bebeu todas depois! Mas o que me convenceu em responsabilizar o Município pelo acidente, foi o depoimento do Mochila! Ele foi muito firme em referir que, no momento da colisão, a ambulância estava trafegando na contramão. 
Você deve estar-se perguntando como eu me baseei no depoimento do Mochila se não fiz a audiência na praça, não é? Ok, eu explico:
Como já referi em crônicas anteriores, e até mesmo já publiquei em fotos do fórum de Marajó City, de um lado do fórum fica a rua da beira e o rio, e de outro, um terreno vazio. Pois eu fiz a audiência com a janela aberta! O Mochila atou a rede nas árvores bem junto ao fórum, e dali, deitado no conforto da rede, em “sua casa”, foi colhido o seu depoimento. Pela janela! Eu dentro, ele fora!
Tudo resolvido.
Coisas de Marajó City!

Por Luís Augusto Menna Barreto

27.5.2019

sexta-feira, 24 de maio de 2019

bora cronicar - O Filho do Relege, o Mariposa e a Moto - parte 2

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O Filho do Relege, o Mariposa e a Moto - parte 2

O Mariposa estava furioso. Por vários motivos.
Primeiro, pelo fato de que não conseguiu desembarcar a moto. Tinha sonhado em sair do trapiche fazendo bafo, acelerando e com todos vendo. Sabia que seria o assunto da cidade quando amanhecesse. 
Agora, depois do que aconteceu, ele sabia que seria, sim, o assunto da cidade. Mas não por ter descido o trapiche, triunfante pilotando a moto; seria porque nem conseguiu desembarcar! Tinha vontade de afogar o Relege e o filho abestado, que atirou no próprio pé. O consolo é que pelo menos, se ele não desembarcou, o moleque não embarcou. Mas o problema é que ele perdeu o dia inteiro. Eram mais ou menos 4h da madrugada quando ele tentou desembarcar a moto, e a maca com o moleque impediu! Por volta de 8h o navio chegou em Breves, de onde somente zarparia em retorno para Belém, às 18 horas. Então, por volta de 22 horas ele estaria finalmente no mesmo trapiche onde a confusão ocorreu. 
Como o Mariposa estava chegando de Belém, já estava quase sem dinheiro, mas tinha uma nota de cem reais para alguma emergência. Era uma emergência. Pelo menos poderia comer alguma coisa durante o dia, pensou. Foi então que quase teve um ataque de nervos: o Tapioca, marujo do navio, veio cobrar a passagem.
— Que passagem? Que passagem? Já paguei o raio da passagem!
— A passagem de ida e volta até Breves! A sua não incluía ida e volta até Breves! Foi o comandante que mandou.
— O quê? Tu tá louco, Tapioca? Eu ia descer e o abestado do comandante que já foi logo zarpando! Não vou pagar coisa nenhuma, quié?! 
E o Mariposa, na sua fúria, já foi dando uns empurrões no pobre Tapioca que não era lá essas coisas em termos de vantagens físicas.
O Mariposa ainda tava soltando fogo pelas ventas, quando o Canhão chegou perto dele:
— Passagem! — e estendeu a mão. Não falou mais nada.
O Mariposa estava furioso. Mas não tinha perdido o juízo. O comandante deve ter mandado o Canhão de propósito. E ele não seria doido de puxar briga com o Canhão! Foi que o Mariposa entregou a nota pro Canhão que pegou e virou as costas sem dizer nada. O Mariposa ficou, evidentemente, esperando o troco, já que naquele tempo, a passagem até Breves era vinte reais. Ida e volta, quarenta, e assim mesmo, se é que teriam coragem de cobrar ida e volta.
O Mariposa passou a manhã inteira ao lado da moto, no convés do navio. Mas quando estava perto do meio dia, já estava com muita fome e resolveu que sairia rápido para fazer algum lanche na beira. Daí foi atrás do Canhão que até aquela hora não havia voltado com o troco.
Achou o Canhão deitado em uma rede no convés superior. 
— Égua Canhão. Nem pra levar meu troco?
O Canhão mal levantou o rosto da rede:
— Não tem troco.
— Bateu a cabeça, Canhão? Dei cem reais! Como não tem troco?
— Frete.
— O que? O que você tá falando?
— Frete da moto ida e volta até Breves. Trinta pra ir, trinta pra voltar.
Disse isso e se virou na rede, dando as costas para o Mariposa que entendeu que a conversa estava encerrada!
Aí, sim, o Mariposa estava soltando fogo pelas ventas! Amaldiçoou mil vezes o Relege e o filho; rogou praga para que o pé do garoto nunca mais endireitasse! 
Depois, pensou melhor: o Relege era vereador, afinal de contas, e o Mariposa um dos maiores comerciantes locais. Resolveu retirar a praga rogada. Decidiu que a culpa era dos carregadores da maca e do Manobra que deve ter demorado com a ambulância! 
Amaldiçoou o enfermeiro do hospital, os técnicos, o Manobra e até a ambulância o Mariposa amaldiçoou, rogando praga que batesse na próxima viagem! Amaldiçoaria o Canhão, mas considerando o tamanho dele preferiu resignar-se. E assim, com a raiva aumentando junto com a fome, o Mariposa passou o dia ao lado da moto, até o navio partir de Breves. Por volta de 22 horas, o Canhão amarrou o cabo de atracação no trapiche municipal. 
A essa altura, o Mariposa já havia falado muito com o comandate pra deixar ele desembarcar a moto sossegado. Daí que depois de todos entrarem e saírem, houve toda a função de colocar a moto na prancha (uma tábua mais fina, porque a outra havia caído na água e ninguém foi pegar), equilibrar e fazer sair. 
Quando a moto estava no trapiche, o Mariposa finalmente sentiu alívio! Não era como esperava, porque, afinal, tirando a moto depois de todo mundo haver saído, já não haveria movimento de gente pra ver a saída triunfal do trapiche. Mas, considerando tudo o que houve, o Mariposa queria mesmo era chegar em casa e descansar.
Eis, entretanto, que o inusitado deu-se: ao descer a rampa do trapiche, foi dobrar à esquerda, ocorreu o infortúnio: vinha a ambulância, como sempre atrasada, para levar enfermo ao navio. E o Mariposa, exausto, com fome e sem habilidade, ainda, na moto, colheu ou foi colhido pela ambulância. Moto para um lado, em queda, e o Mariposa foi parar perto da traseira da ambulância, bem onde sairia o enfermo!
E foi, que o Mariposa gritava no chão para atende-lo, e o enfermo gritava de dentro da ambulância para que o levassem ao navio.
Quando o Manobra e o enfermeiro pegaram a maca, o Mariposa, já sentado no chão, segurou na ponta da maca. De dentro, o enfermo segurou na outra e começou o empurra-empurra: o enfermo querendo sair da ambulância na maca, e o Mariposa querendo entrar na ambulância na macal!
… 
O navio partiu sem esperar a resolução do problema. E o enfermo era o Relege, que, vendo o rebento pular em um pé só, na noite anterior, passou mal, subindo-lhe a pressão e exigindo transferência para Belém, tendo esperado o dia todo pelo navio…

Por Luís Augusto Menna Barreto

24.5.2019

quinta-feira, 23 de maio de 2019

bora cronicar - Um Conto do Pilha - parte 3 - final

bora cronicar

Um Conto do Pilha - parte 3 - final

Da nossa sinaleira até aqui é muito longe! A gente tem que atravessar a cidade. Mas a gente não ia faltar por nada nessa festa. Agora eu aprendi o nome de mais uns meses, e sei que a gente tá em abril! Eu não acho o nome tão bonito como “setembro”, mas agora, é o mês que eu vou mais gostar pra sempre. 
Eu descobri porque o Pilha escolheu que o aniversário dele era no dia 23 de abril: porque é o dia do São Jorge. A gente trabalhou dobrado desde que começou abril, e nem fomos no parquinho nesse mês, só pra conseguir juntar dinheiro pra comprar as camisetas! Nossa, eu nunca vesti uma roupa nova! Tem um cheirinho melhor que cola!
Eu acho que nunca tinha visto o Pilha tão feliz, desde que ele se vestiu de palhaço. Pensando bem, acho que só agora entendi quando aquela vez o Pilha disse que queria ser ator, mas não pra viver a vida do outros… era pra não ter que viver a nossa. Também, depois de tudo que ele tinha passado e eu nem sabia. Até o dia que o São Jorge apareceu pra mim, eu não sabia que o “Desbravado" tinha machucado o Pilha. Só fiquei sabendo depois que o São Jorge mandou o Pilha ir lá me buscar. Naquela noite, a gente quase morreu de frio, porque a igreja grande lá da Duque tava fechada e cheia de grade e a gente não achou lugar pra dormir. Daí a gente se enrolou juntos na toalha velha que ele tinha me dado e ficamos caminhando quase a noite toda. 
Quando tava ficando dia, fomos direto pra nossa sinaleira. Mas logo que chegamos, o irmão do Pilha que vende DVD no centro, chegou lá furioso, chegou logo dando tapa na cabeça do Pilha e perguntando o que ele tinha feito. Mas não foi tapa de machucar… acho que foi de nervoso. Ele parecia preocupado com o Pilha. 
— O que tu fez, Pilha? O que tu fez? O Cigano me falou que o Depravado saiu do pronto socorro com a cabeça enfaixada! E só tá dizendo que vai matar vocês dois!
— Ele desmorreu? — O Pilha perguntou! Mas não tava apavorado. Parecia aliviado. Acho até que ouvi ele dizer “ainda bem”. Mas foi tão rápido que acho que quando ele falou o irmão dele deu outro tapa.
— Vocês tem que vazar daqui! Some! Ele vai vim aqui pegar vocês!
— Mas se a gente não guardar nosso ponto, moleque vem e pega!
— Se tu ficar aqui, tu morre! 
Mal ele falou e a gente viu o “Desbravado" virando a esquina. Tava com um pedaço de pau na mão. 
O irmão do Pilha tentou atrasar o “Desbravado”:
— Qual é maluco? Deixa pra lá que já dei o corretivo no moleque…
— Cai fora! Vou esfolar os piá.
A gente correu muito. O “Desbravado” nunca ia conseguir alcançar a gente. A gente sabia que ia perder a sinaleira se não trabalhasse, mas se o “Desbravado" desmorreu, era a gente que podia ficar morrido.
Daí, a gente passou o dia se escondendo. O primeiro lugar que a gente pensou foi o parquinho, na nossa árvore. Mas ela tava quase pelada, sem folha. Só nasce folha de novo quando fica quente o ano. Mas ainda tava frio. Daí, o Pilha, que é gênio, pensou: 
— Bora pros maricá do parque do rio.
— Tá doido, Pilha?
— Se o Depravado tá procurando a gente, ele não vai procurar lá. Bora, mané!
A gente foi, e passou o dia por lá. Mas quando começou a acabar o dia, tava muito frio. E a gente não tinha comido nada. E a esponja de cola que o Pilha tinha pra emergência, já não tinha mais nenhum cheiro. 
— Bora mané. Vou contigo até o muro. Daqui a pouco o Depravado pode voltar aqui. 
Eu sabia que ia apanhar da mãe, porque eu não tinha arranjado nem uma moeda, já a gente não trabalhou nada. No caminho, a gente foi passar na nossa sinaleira, pra ver quem ia ter tomado ela de nós. Mas daí, foi uma surpresa: o mano do Pilha tava lá! Ele não foi vender DVD pirata e ficou lá segurando nosso ponto. 
— Quanto tu precisa, moleque? — ele me perguntou.
— A mãe manda eu dar 8 pilas todo dia.
— Toma 6 e te vira. E fiquem espertos. Olho nas costas. Pilha, tu vem comigo?
— Não. Vou com ele no muro, desdobrar a mãe dele. Valeu.
— Valeu um caramba! Me devem 10 por hoje! — Mas o irmão do Pilha disse isso sorrindo. Acho que ele é parecido com o Pilha. Eu não sei o nome dele e, desde aquele dia, eu chamo ele de Pilhão!
A gente foi pro muro olhando tudo que é lado. O Muro fica nessa rua grande com o valo no meio. Num lugar que não tem muita casa. Mas quando a gente tava chegando, meu coração congelou mais que o frio que tava fazendo: ouvi o choro da mana. Quando a gente dobrou, vi a bebê no chão, chorando. Daí eu corri pra bebê. E quando tava correndo, vi barulho de batida e ouvi a mãe gritar. Daí, atrás do papelão, meio por cima, vi uma cabeça enfaixada. Meu Deus, era o “Desbravado”! Eu vi o braço dele levantado com um pau na mão, e ele baixou forte duas vezes e ouvi dois gritos da mãe! 
Quando eu tava segurando a bebê, vi o Pilha dar um pulo por cima do papelão e cair em cima do “Desbravado”. Mas logo ele jogou o Pilha de volta e vi o “Desbravado” levantar e vir pra cima do Pilha com o pedaço de pau. Eu acho que a mãe lutou muito com ele, porque ele tava com a bermuda abaixada e andando arrastando os pés, indo pra cima do Pilha. Ela deve ter conseguido fazer isso pra ele não conseguir correr se ela fugisse. 
Eu tava paralisado de medo e tentando proteger a mana que chorava muito. Daí, eu rezei pro São Jorge. Eu sabia que ele já tinha me salvado e devia ter muita gente pra salvar toda hora; mas eu pedi que se ele pudesse vir de novo, eu nunca mais ia desobedecer a mãe, e não ia mais gastar as moedas com doce!
O Pilha tava tentando levantar e o “Desbravado” deu uma paulada nele. O Pilha caiu de novo e deu um grito. Achei que ele ia correr, mas o doido do Pilha levantou ligeiro e se jogou de cabeça direto na barriga do “Desbravado”. Acho que o "Desbravado" não tava esperando por isso e caiu. Mas logo levantou e deu outra paulada. Essa acho que doeu, porque o pilha se abaixou e não levantou. 
O “Desbravado" foi pertinho dele. O Pilha tava no chão. Ele levantou o pau pra dar no Pilha. Eu achei que o Pilha ia se esconder e fechar os olhos. Mas não. O Pilha ficou encarando ele. Parecia nem ter medo! Eu ouvi o Pilha dizer:
— Bate, desgraçado! — e não sei como, mas o Pilha até sorriu: — Eu vou pr'um lugar que tu nunca vai ir!
— Tá delirando, moleque! Pois tu vai pro inferno e é agora!
E quando o “Desbravado" foi bater, a gente ouviu um estrondo! O “Desbravado" olhou assustado pra trás e arregalou os olhos. 
Um policial a cavalo chegou dando tiro pra cima. Um cavalo branco lindo. Nunca tinha visto um cavalo tão grande. Depois chegou outro policial. Algemaram o “Desbravado" e eu vi ele ligar pedindo ambulância. Ele foi primeiro no Pilha, mas o Pilha disse que tava bem, que era pra ver a mãe, e apontou pras pernas embaixo do papelão. A mãe tava sangrando na cabeça e na boca, mas tava acordada. 
Fomos todos pro Pronto Socorro. Mas antes da gente entrar na ambulância eu ouvi: o policial do cavalo branco tinha um rádio no ombro e alguém chamou. E eu ouvi:
— Cabo Jorge na escuta, copiou?
Eu sabia. Eu sabia! Ele tava disfarçado mas era ele! No cavalo branco! São Jorge!
Faz tempo, já! O frio já foi embora! E eu nem sei como, mas o Pilha descobriu a igreja dele, aqui nessa esquina da rua grande, do lado do viaduto! 
E a gente cuspiu na mão e fez a promessa: até morrer, todo ano, nós vamos na missa e na festa do São Jorge!
(Fim)
Luís Augusto Menna Barreto

23.5.2019

quarta-feira, 22 de maio de 2019

bora cronicar - Um Conto do Pilha - parte 2

bora cronicar

Um Conto do Pilha - parte 2

— Pilha… como foi que São Jorge te encontrou?
— O quê? Bateu tua cabeça? 
— Eu falei com São Jorge e perguntei onde você tava. Foi ele que te levou, não foi?
O Pilha ficou olhando pra mim. O Pilha sempre tinha resposta pra tudo. Mas ele ficou quieto. Parecia que ele queria e não queria falar ao mesmo tempo. Nunca tinha visto o Pilha assim.
— O desbravad…
— Depravado!
— Isso, esse nome aí. Ele me arrastou por um tempão até a gente chegar lá nos maricá, Pilha.  Mas você foi tão rápido. Foi São Jorge que te levou, não foi?
O Pilha ficou em silêncio de novo.
Mas eu queria saber, então fiquei insistindo e perguntando:
— Como você chegou lá?
O Pilha continuou sério. 
— Êh, Pilha. Ficou mudo é? Sou teu amigo. A gente é parceiro. Não vai falar?
O Pilha demorou um pouco, até que falou:
— Eu sabia o caminho, mané.
— Como sabia? 
Ele demorou de novo, mas falou. O Pilha tava estranho…
— O Depravado já me levou lá.
— E ele te deu café, ou também te enganou?
— Não tem café nenhum. Nunca teve. 
Daí, o Pilha meio que ficou brabo do nada, eu quase me assustei:
— Você é muito burro. Não sei como não vê as coisas: não tem café, não tem papelão, não tem droga nenhuma! Ele pega a gente pra… pra… 
O Pilha não falou. Acho que o desbravado machucou o Pilha.
— Ele te machucou, Pilha?
— Ãrrã!
— Mas você chamou o São Jorge, não chamou? Ele foi lá, não foi?
— Eu chamei o São Jorge, mané… Mas acho que o São Jorge tava ocupado com alguma coisa mais importante… … e pra mim, ele chegou atrasado.
(Fim da parte 2)
Luís Augusto Menna Barreto

22.05.2019