O Promotor, o Torneio e as Fadas
“Ele roubou a banda do porco, doutor”.
“Não roubei nada! Tava morto peguei o que era meu!”
Não, eu não estava na sala de audiências. Nem no fórum! Estava pegando a mochila, ainda, saindo do barco, depois de mais de 4 horas navegando de uma cidade pra outra na região do Marajó.
Os dois que estavam discutindo haviam ido até a sede do judiciário, muito exaltados. Lá procuraram o Promotor, mas este, que havia chegado dois dias antes, estava envolvido com o problema das “Fadas”, e pelo jeito iria demorar. Daí, que o Goela, que também estava por lá, disse, com o seu jeito inevitavelmente maroto, sabendo que iria dar pano pra manga:
“Olha, o juiz tá chegando daqui há pouco no municipal” (trapiche municipal).
Foi só o que o Goela disse. Ele sabia que, dizendo isso, os dois iriam lá pro trapiche brigando, esperar eu chegar. E quando eu reclamasse, ele iria dizer que só avisou que eu chegaria, não que era pra eles irem até lá! Mas, enfim, é o Goela, né?!
A viagem havia sido tranquila e demoramos porque o Fumaça, piloto do barco, teve que dar voltas pra ir bem pelo canal, porque a “água não tava grande” e, se fôssemos por cima da praia, poderia encalhar. Quando a gente sai do “furo de Breves, no Marajó, para atravessar a baía para o lado do continente, atravessando o rio Pará, para ir até a parte de trás da pequena ilha que é onde fica a sede da cidade de Bagre, tem muita praia quando a maré do rio (sim, rio tem maré, no Marajó!) tá baixa. Quando a “água tá grande”, o barco passa por cima da praia e economizamos até quase 1 hora. Se a “água tá pequena”, tem que ir pelo canal, e aí, só quem conhece o local, porque as indicações são apenas umas poucas varas cravadas no rio, que só quem tem o olho acostumado a ver na lonjura da água sem fim que consegue identificar.
Pois quando cheguei, estava pegando a mochila, ainda com uma perna o barco outra no trapiche, chegaram os dois discutindo, e falando como se estivessem falando comigo a manhã inteira!
“Ele roubou a banda do porco, doutor”.
“Não roubei nada! Tava morto peguei o que era meu!”
“Hein?! Bom dia pra vocês também!”, falei para ver se eles se tocavam que eu não estava entendendo nada e estava chegando agora!
“Bom dia!”
“Bom dia!”
"Pois ele roubou a banda do meu porco, doutor. Ele tem que devolver!”
“Roubei nada!”
Socorro!!!
Já havia saído do trapiche municipal, já estava na praça na frente da igreja indo para o judiciário, e os dois não paravam de falar, fazendo com que eu nem percebesse toda a calma da cidade!
Virei para os dois e falei:
“Acalmem-se os dois!” (Tá bem, eu não falei “acalmem-se”, eu falei “se acalmem’”, mas não quis escrever errado). “Lá no judiciário a gente resolve!”
“Tá bem, doutor, lá o senhor vai mandar ele me devolver a banda do porco!”
“Devolvo nada, doutor, lá no judiciário o senhor vai ver que ele estava me devendo”!
E assim foi, não adiantou nada eu dizer para esperar chegar no judiciário.
Quando chegamos (sim, quando nós TRÊS chegamos), o Goela estava na porta, com um sorriso de quem está rindo por dentro, sabendo da confusão que havia aprontado!
Eu havia ido porque combinei com o promotor e com o defensor público, fazermos um mutirão de processos criminais do juizado especial, que são aqueles pequenos delitos que, na prática, não deixam ninguém preso, como brigas, rixas, e pequenas confusões entre vizinhos e amigos que bebem demais.
Eu estranhei os dois terem ido esperar-me desde o trapiche. Eu sabia que devia ser coisa do Goela, mas, mesmo assim, quando tem promotor ou mesmo defensor público na cidade (e os dois estavam lá há dois dias) as pessoas sempre correm para eles com qualquer problema. E o promotor que estava lá não era qualquer um e nem era do tipo que foge dos problemas. Já falei dele outro dia, e prometi que não ia dizer que o nome dele é Gerson!
Chegando no judiciário (eu esqueci de dizer que o pessoal de Bagre chama o local das audiências de “judiciário”), perguntei logo pelo promotor. Mas vocês tem que entender que todo o caminho do trapiche ao judiciário, e mesmo enquanto eu falava com o Goela perguntando pelo promotor, os dois continuavam num tal de “roubou banda do porco, não roubei, roubou sim, tu estavas me devendo”!
“Boa tarde, Goela! Foste tu que mandaste esses dois atrás de mim?”
“Claro que não doutor! Só falei que o senhor tava pra chegar!”
“E o promotor?”
“Tá com as “Fadas”, doutor”.
Enruguei a testa num universal gesto de “diga mais”.
“O torneio de futebol começa hoje, doutor, e a prefeitura não deixou o time das “Fadas" ser inscrito. Tá a maior onda lá na promotoria!”
As “Fadas" são os gays da cidade. Para uma população do tamanho de Bagre, até que tem bastante… mas fazem barulho como se fossem muito mais! O mais interessante é que convivem praticamente sem homofobia, com toda a população sabendo quem são, sem precisarem esconder-se, nada! Entre as “Fadas" tem professores, servidores públicos, pessoas inseridas na comunidade de maneira completamente normal. Apenas fazem parte das “Fadas” e pronto!
Daí, que foi um reboliço a proibição do time das “Fadas" ser inscrito no torneio. E foram todas, ou quase todas falar com o promotor (vou usar o gênero feminino porque estou usando o termo “Fadas”, sem qualquer conotação pejorativa!).
Como o promotor não é de meias soluções, quando começou o falatório todo, ele não teve dúvidas: bateu na mesa, pediu silêncio, e chamou o Goela (viram que o Goela é um “faz-tudo”, né?!)
“Goela, chama agora o secretário de educação aqui!” No município, o secretário de educação cuida, também, do esporte e cultura.
O Goela nem disse nada, e se mandou para a prefeitura!
Ele sabia que quando o promotor chamava, era sério. Teve uma vez que um ex-vereador estava sendo processado, e houve várias audiências frustradas, porque ele nunca comparecia, apresentando sempre atestado médico. Numa dessas, em que a audiência era pela manhã, quando o promotor estava indo para o judiciário, viu o ex-vereador na frente de uma loja na beira. Daí, quando chegou na hora da audiência, o Goela chamou o ex-vereador e ele não apareceu, enviando um atestado médico.
Acho que era o terceiro atestado médico no mesmo processo. Olhei, e alcancei o atestado para o promotor. O promotor, na hora:
“Goela, vem aqui. Pega esse atestado, leva lá na casa dele agora e fala que ele tem três opções. Mas presta atenção pra decorar as três, que vou falar só uma vez: ou ele vem, ou ele vem, ou ele vem!”
Menos de dez minutos depois, o ex-vereador apareceu lá, com um cabide de soro e a agulha no braço!
Daí que quando o promotor falou para chamar o secretário de educação, o Goela foi faceiro!
Em seguida, o secretário chegou na salinha da promotoria, e entrou sob vaia das “Fadas”.
No meio do “bom dia” que o secretário tentou falar, o promotor já foi dizendo:
“Ou as “Fadas" jogam, ou não tem torneio. Obrigado. Bom dia.”
Simples assim!
Enquanto isso, eu finalmente conseguia sentar-me para dar ouvidos aos dois brigando pelo porco.
“Sim, explica o que houve, Tesoura”. O Tesoura era o dono do porco, e tinha esse apelido, não porque era criador de porco, claro, mas porque era cabeleireiro!
“Doutor, o "Papel de Xerox” roubou meia banda do meu porco!, e eu quero de volta”.
“Roubei nada, doutor. Ele tava me devendo a meia banda, pode perguntar pra ele”
Não cheguei a perguntar, mas o Tesoura foi logo falando:
“Eu devia, doutor, mas o combinado não era esse. Eu perdi na aposta da bola, mas eu ia dar só quando o porco morresse”.
“Mas ele morreu, doutor”.
“Morreu nada, tu que mataste!”
“Eras! Pois se eu matei, ele morreu. Doutor, eu lhe juro que matei ele primeiro, e depois tirei minha banda. Não ia fazer isso com o bicho vivo!”
“Hein”?
Pois é… mas enfim, o dia estava animado! Ouvi os dois mais um pouco e ficou por isso mesmo. O porco já tava morto mesmo, fazer o quê?!
Depois de mais um tempo entre problemas de porcos, galinhas e vizinhos, não necessariamente nesta ordem, chegaram as “Fadas" pra falar comigo.
Fiquei estranhando, porque dificilmente um problema levado até o promotor, não era resolvido.
Mas o assunto era outro:
“Doutor, tem o nosso baile na semana que vem. Podemos contar com a sua ajuda?”
Fiz minha cara de “hein”, sem dizer nenhuma palavra.
“A gente sempre pede colaboração pra todos. Nosso ídolo, o doutor promotor, já ajudou”.
Bem, acabei contribuindo.
Depois disso o dia correu normal, fizemos as audiências, resolvemos o que dava para resolver e, no final do dia, estávamos indo para o hotel, eu, o promotor e o defensor público, que resolveu parar numa banca de DVD’s piratas. Eu fiquei uns passos afastado, e o promotor ficou conversando comigo. Depois, o promotor saiu e foi em direção à banca. O atendente, já sabendo que o promotor havia resolvido o problema das “Fadas" quis agradar o promotor (o vendedor da banca era do time das “Fadas” também).
“Ô doutor, nem tem como agradecer. Obrigado pelo que o senhor fez por nós. Olhe, para o senhor, eu ofereço pelo mesmo preço qualquer um desses filmes aqui, que são especiais”. E tirou de baixo da banca uma caixinha com DVD’s que não estavam expostos. De longe eu não vi nada. Mas só vi o promotor saindo xingando o vendedor. Estranhei! Depois fiquei sabendo: o vendedor achou que o promotor fosse uma das “Fadas”, por ter ajudado, e queria oferecer filmes especiais… na verdade eram filmes pornôs gays!!
Báh, foi quase uma semana que eu e o defensor público ficamos tirando onda com o promotor. Mas o problema foi na semana seguinte, quando voltamos na cidade e era o dia do baile das “Fadas”.
Eu notei que o pessoal da cidade estava me olhando um pouco mais do que de costume e quando eu passava o pessoal olhava e cochichava entre si alguma coisa.
Pois quando passamos à tarde na frente do local onde seria o baile das “Fadas" estava lá a faixa e o cartaz:
“Baile das Fadas. etc, etc, etc… apoio, Doutor…” Meu nome!
Dá pra imaginar a onda que o promotor tirou? Juiz gaúcho, apoiando o baile das “Fadas”?
Por Luís Augusto Menna Barreto