domingo, 21 de dezembro de 2025

A Confusão do Desmorrido


Em destaque (último trecho publicado):

… foi abraçar o marido desmorrido:

— Alberto, que susto! Achei que tinha perdido você.

O desmorrido olhou assustado e não retribuiu o abraço:

— Carmem… esposa do Alberto, né?

— Tua esposa, Alberto! Tua! Que conversa é essa?


Trecho 9

(Meu)


Todos os trechos publicados, em seqüência:


Nenhum dos velórios dele havia sido tão triste, como na primeira vez que ele morreu. E foi também o mais concorrido!



A primeira morte foi a mais traumática… mas pior foi quando desmorreu… entre o susto e a felicidade, o primeiro saiu ganhando. Era santo ou visagem…?


Foi a sete passos da cova já aberta, que os seis amigos que levavam o caixão nos ombros ouviram as batidas… como se combinado, pararam de caminhar… o cortejo parou intrigado… e novamente ouviram-se batidas que só poderiam ser do morto, vindo de dentro do caixão…!


Dos seis amigos que carregavam o ataúde, um saiu correndo em velocidade que nem sabia, outro se ajoelhou em profusão de sinais da cruz, e os demais não sabiam se continuavam ou n˜ao! O Padre resolveu o impasse, determinando que se voltasse à capela, o que se fez em passo apressado…


O cortejo em marcha ré, ao som das batidas do morto, as carpideiras já não sabiam se deveriam continuar chorando: se o morto tivesse desmorrido e tudo estivesse ao contrário, talvez rir fosse o adequado! A confusão deu-se maior quando o cortejo vindo de ré, encontrou…


… outro morto a entrar na capela. Os dois cortejos pararam e deu-se a confusão. Os dois Padres reunidos em conselho, um do morto fresco outro do desmorrido, chegaram à conclusão de que, sendo a capela para velório, mais direito teria o morto fresco. E foi daí que o caixão com o…


… morto desmorrido foi conduzido para o carro funerário! O cortejo já tinha acostumado com as batidas, então, a curiosidade falou mais que o medo. O Padre mandou abrir, empunhando a cruz, e pronto pra jogar água benta, como se fosse arma! Quando levantaram a tampa,


… o morto logo sentou com cara de quem não está entendendo! D. Zilma, mãe do morto, que aguentou firme quando ele morreu, não suportou o desmorrer e desmaiou! O morto pareceu nem se importar. Então a Carmem, sua esposa, venceu o susto e o medo, abriu caminho e


… foi abraçar o marido desmorrido:

— Alberto, que susto! Achei que tinha perdido você.

O desmorrido olhou assustado e não retribuiu o abraço:

— Carmem… esposa do Alberto, né?

— Tua esposa, Alberto! Tua! Que conversa é essa?


Trecho 9

(Meu)




terça-feira, 16 de dezembro de 2025

A Marmita, a Confissão e o Padre




Foi o Mariposa quem notou: a Marmita estava indo até o orelhão. Ficou curioso.

Ela havia falado alguma coisa quando passou pelo Mochila, deitado na rede atada no coreto da praça. Depois, abanou para a Telegrama que estava na porta da agência do Correio. Antes, havia falado algum gracejo para o Chaminé, enfermeiro que estava fumando na porta do hospital. Para o Mariposa, que estava tomando uma cervejinha no açougue do Retalho, ela abanou. Foi daí que ele ficou acompanhando com o olhar aquela morena fogosa… e notou que ela foi para o orelhão.

Saiu debaixo da cobertura de telha que protegia a mesa de bilhar na calçada, na frente do açougue e foi até a rua, para ver melhor! Parecia que a Marmita havia colocado uma ficha no orelhão. Primeira pergunta: ficha da onde, que a única que se conhecia na cidade era do Mesa Branca?! E o que a Marmita faria no orelhão estragado?

Ela ficou um instante com o fone no ouvido e, de repente, largou o fone e começou a abanar-se como que querendo falar e sem emitir nenhum som. O Mariposa foi acudir. Copo na mão, caminhou rápido até a Marmita:

— Que foi, já, pequena?

Ela gesticulava, apontava para a boca e não falava! Ele ofereceu um pouco da cerveja gelada que trazia no copo. "Na falta de água com açúcar...", pensou…! 

A Marmita aceitou, tomou o copo todo, devolveu para o Mariposa, mas continuou sem falar! Logo chegaram o Manobra e o Goela. A Tutela, que estava na porta do Fórum, também foi. Nada da Marmita falar! Só gesticulava, apontava para o orelhão e para a boca. Depois, colocou as duas mãos para a frente, como quem pede calma, e fez os seguintes sinais: apontou para a boca, depois uniu as duas mãos como se fosse rezar, e apontou para a Igreja. A Tutela colocou o braço por cima do ombro da Marmita, como quem vai ampara-la e começaram a andar em direção à Igreja. De repente a Marmita parou, voltou uns passos e lembrou-se de colocar o fone no gancho. Ouviu o barulho da ficha sendo devolvida, colocou dois dedos no compartimento e resgatou-a. 

Nesse momento, já havia quase uma dezena de pessoas em volta.

Foram todos em uma pequena procissão em direção à Igreja. Marmita foi direto para o confessionário. A Tutela foi até a sacristia para chamar o Padre. Lá estava apenas o Tinho, neto da D. Mocinha, coroinha prometido à vida de celibato e de sacerdócio em promessa feita pela avó, por conta do menino ter nascido com vida, quando a mãe morreu no parto, dentro do barco. Muitas mulheres tem medo de simplesmente falar com Tinho, porque D. Mocinha faz confusão com qualquer uma que fale com o neto “Santo”, crente que é o diabo em forma de mulher querendo desencaminhar o moleque da vida de santidade a que ela o prometeu. A Tutela perguntou da porta mesmo, e o Tinho disse que o Padre talvez estivesse no bar do S. Nonô.

A Tutela foi atrás. Enquanto isso, a notícia ia sendo espalhada e começaram a chegar mais pessoas na Igreja comentando o acontecido e querendo saber mais notícias. 

— Que história é essa Tutela? — quis saber o Padre.

— Tudo que sei é isso, Padre: ela tá lá, mudinha da silva, ajoelhada no confessionário!

— Mas essa aí nunca se confessou! 

— Disso não sei. Ela foi no Orelhão e saiu muda, veio ligeiro para a Igreja e quer se confessar!

O Padre olhou o S. Nonô, que apenas disse “iiiiiiiiiiiixi" e continuou passando o pano no balcão. Mais por curiosidade do que por intenção de salvar uma alma, o Padre foi com a Tutela para a Igreja. Admirou-se ao entrar, porque havia mais de quinze pessoas sentadas, olhando para o confessionário, onde estava a Marmita. 

Estranhando aquilo, entrou no confessionário.

— Queres confessar, minha filha?

Silêncio.

— Você precisa falar seus pecados para eu poder dar-lhe absolvição.

Silêncio. O Padre tentou olhar pelos furinhos. Já não gostou muito de ver a Marmita sem véu na cabeça, mas "vá lá"... A Marmita, vendo o olhar do Padre, fez-lhe sinal apontando a boca e fazendo que “não" com o dedo…

“Que estranho", pensou o Padre… "não pode ser! Outro caso de mudice?” 

Na dúvida, o Padre decidiu fazer o mesmo que fizera com o Mesa Branca afinal, se o havia confessado, pegaria mal não aceitar a confissão da Marmita.

— Certo, minha filha… pense, então, nos seus pecados…

Bem, o Padre havia repetido o que fizera com o Mesa Branca… e não esperava o que aconteceu com a Marmita. Com o Mesa Branca, levou poucos minutos, muito sério, pensando e pronto! Além disso, sempre fora devoto, frequentava a Igreja, cantava no coral… mas a Marmita… 

… bem… ela levou a sério e cumpriu o que o Padre mandou: começou a pensar nos pecados!

Primeiro ela fechou os olhos… até aí, tudo bem. Mas à medida que começou a lembrar dos pecados, seguiu-se uma série de reações: lembrando de uns, sorria de olhos fechados… para outros, suspirava! Em alguns, chegou deixar escapar uns gemidos… 

O Padre depois de alguns minutos, interrompeu-a:

— Vais demorar, minha filha?

Ela levantou a mão com a palma para cima e começou a fazer movimentos de unir e separar todos os dedos, como quem diz: "ainda tem vários…”

O Botóquis, que era um dos que havia ido até a Igreja e, ciente dos próprios pecados*, sentara bem perto do confessionário, escutou o Padre dizer “pense nos seus pecados”, e logo levantou dali…

Demorou uns vinte minutos e o Botóquis entrou novamente na Igreja em um estranho silêncio e, em vez de sentar-se, postou-se em pé, mais ou menos um metro atrás da Marmita, que ainda sorria pensando nos pecados, ajoelhada no confessionário.

O Padre, já nem impaciência demonstrava, observando um silêncio quase incomum para confissões. As pessoas aos poucos, dado que não se sabia o tempo que a Marmita levaria em sua confissão, começaram a sair da Igreja. Porém, na medida que os bancos esvaziavam, a fila de confissões aumentava significativamente: atrás do Botóquis, entrou a Pipoca (Salgada), que havia saído algum tempo depois do Botóquis. Depois veio o Cara de Cuspe, a Mimosa, o vereador Relege, a Tonha Puxa Ferro, o Pena de Galinha… a fila não parava de crescer… em um silêncio como nunca se viu! 

Lá fora, duas esquinas depois, enquanto o Mesa branca dormia um sono pesado na rede, a Pipoca (Doce) ia recebendo presentes: um litro de açaí aqui, um saco de farinha ali, camarão, mandioca… 

… e a fila no orelhão aumentando, com a ficha do Mesa Branca passando de mão em mão, repetindo-se em ligações que nunca se completavam!


Luís Augusto Menna Barreto

15.12.2025


*Para saber dos pecados do Botóquis, vide a crônica: “Os Casos da Tonha, do Botóquis e da D. Mocinha

Se você gostou dessa história e quer ver como tudo começou, leia a crônica: "O Orelhão, o Mesa Branca e o Padre"

Se você ainda gostou, veja a parte dois: "A Confissão do Mudo, o Padre e a Marmita"


Luís Augusto Menna Barreto

15.12.2025

domingo, 9 de novembro de 2025

A Confissão do Mudo, o Padre e a Marmita




   O Mesa Branca havia emudecido! De uma hora para outra! Ele havia ido até o único orelhão da cidade*, e, quando colocou de volta o fone no gancho, estava pálido, sério… e calado!

Todos ficaram se perguntando o que poderia ter havido, especialmente porque o orelhão há muito não funcionava, embora o Mesa Branca todos os dias fosse até lá depois da sesta, colocasse a ficha, e começasse a falar e (aparentemente) escutar. No final, a ficha era sempre devolvida e ele voltava no dia seguinte!

Evidentemente, os amigos e familiares perguntavam com quem ele falava tanto, mas ele se limitava a responder:

— Pessoas… pessoas!

— E o que tu tanto falas, Mesa Branca? — Perguntavam todos: o Retalho, o Mariposa, o Manobra, o Goela, a Pipoca, enfim, todo mundo tinha curiosidade, ao quê, o Mesa Branca, caboclo iletrado e de poucas luzes, respondia:

— Alhures…alhures!

Ele falava isso com um certo ar de superioridade e displicência, e o fato é que ninguém retrucava. Muito certamente, porque ninguém sabia o que significava “alhures”… provavelmente, nem ele mesmo soubesse.

Mas, enfim, houve esse dia, em que o Mesa Branca saiu pálido, sério e calado do orelhão!

Caminhou devagar até o açougue do retalho e balançou a cabeça com o queixo para cima, pedindo uma cachaça. O Retalho entendeu e, naquele momento, não perguntou nada. O Goela e o Manobra, que estavam ali, também não perguntaram, tal era o semblante sério do Mesa Branca. Virou de uma vez o copo, colocou no balcão e saiu sem dizer uma palavra! O Retalho limitou-se a pegar a caneta de trás da orelha, pegar o caderninho pendurado por um barbante no teto, rente à parede e anotar a dose na conta do Mesa Branca. E assim, sério, chegou em casa! Olhou com alguma gravidade para a Pipoca (Doce), que preferiu nem perguntar. Fora deitar quieto naquele dia, e nem deitou-se na mesma rede que a Pipoca. Não teve saliência naquela noite. Atou a rede fora de casa, entre um açaizeiro e a perna manca da varanda.

No dia seguinte, quando acordaram, a Pipoca logo disse para o Mesa Branca ir buscar um pão para preparar a merenda dos filhos, para levar para escola. O Mesa Branca não falou nada, e foi. Os filhos, antes de ir para escola, pediram a bênção, e o Mesa Branca limitou-se a beijar as mãos dos dois garotos e balançar a cabeça para cada um.

— Mãe, o pai ficou mudo?

— Pelo jeito… — Respondeu Pipoca, ainda sem levar a sério. 

Mas com o passar dos dias, a coisa mostrou-se séria e já havia comentário: Mesa Branca emudeceu!

Acontece que o Mesa Branca era muito devoto, e sempre ajudava na Igreja. Participava da Missa do domingo e ajudava a puxar as músicas, com um coral improvisado, composto por ele, a Véu de Noiva e a Dona Mocinha. Na hora da Missa das 7h do domingo, a Igreja estava mais cheia do que o normal, porque como havia se espalhado a notícia da mudez do Mesa Branca, alguns ficaram curiosos para ver se ele iria cantar. Então, alguns minutos antes do início, lá chegou o Mesa Branca e pegou seu lugar no “coral”, no primeiro banco do lado direito do altar. O Padre começa a procissão da porta até o altar e inicia o canto: 

“Eis-me aqui Senhor/ Eis-me aqui Senhô-ô-ô-or…” 

Lá estava o Mesa Branca. No meio das duas companheiras de coral, balançando a cabeça como sempre fazia… … mas sem emitir um som sequer! Apenas as duas vozes femininas se faziam ouvir.

E assim foi durante toda a missa. Toda a assembléia passou a olhar mais o Mesa Branca do que o Padre! Vendo isso, o Padre irritou-se e, ao final, foi falar com o Mesa Branca. Muitos fiéis não arredaram pé. 

— Edinelson (era o nome do Mesa Branca. O Padre recusava-se a chama-lo pelo apelido, considerando a origem não católica, mas isso é história para outra crônica). — Por que não falas? 

Silêncio. Os olhos sérios fitando o Padre.

— Foi promessa?

Cabeça de um lado para outro, em um universal gesto de negação.

— Foi pecado?

Ombros levantados e cabeça ligeiramente para o lado! Gesto preciso para traduzir  um impreciso “talvez”, “quem sabe”. Gesto de quem “acha" mas não tem certeza… ou não quer admitir algo que sabe.

E assim o Padre conduziu o Mesa Branca para o confessionário. Metade dos fiéis não haviam arredado pé da igreja e continuavam acompanhando o desdobrar dos acontecimentos.

O padre entrou em seu reservado e o Mesa Branca ajoelhou na parte externa. 

— Queres confessar teus pecados, meu filho?

Mesa Branca balançou a cabeça na vertical.

— Quais são seus pecados?

Silêncio. Mesa branca olhava o Padre, pelos “furinhos" de comunicação do confessionário, com olhos suplicantes. O Padre esperou e nada. O Mesa Branca continuava ali, quieto! E o Padre encontrou-se em um dilema: para a absolvição, era preciso que o Mesa Branca confessasse os pecados, falasse! Mas ele não falava. E se fosse verdade a mudez? E se o Mesa Branca não pudesse mesmo falar? O que faria? Não poderia chamar alguém para traduzir eventuais gestos e sinais, porque quebraria o sigilo da confissão. Escrever poderia ser uma saída… mas o Mesa Branca não lia nem escrevia. Sugerir pecados para o Mesa Branca fazer gestos de sim e não, poderia levar tempo demais, afinal a lista de pecados que o Padre aprendeu em mais vinte anos de confissões levaria dias para desfiar. Mas e agora? Negar a absolvição para o Mesa Branca, seria o mesmo que condenar todos os mudos. O Padre nunca pensara nisso. Nunca recebera confissão de mudos. Como eles se confessavam? 

Na dúvida, e conhecendo o Mesa Branca, o Padre optou por absolve-lo:

— Meu filho, pense nos seus pecados. E balance a cabeça quando pensar em todos. 

Demorou uns poucos instantes. O Padre calculou que não haveria mais de cinco pecados pensados e cometidos pelo Mesa Branca pelo pouco tempo que levou. Logo, o Mesa Branca levantou os olhos e baixou uma vez a cabeça, com gravidade como quem avisa: “terminei”.

O Padre pensou um pouco, deu-lhe como penitência, rezar duas Salve Rainhas, quatro Pai Nossos, e vinte Ave Marias. Por via das dúvidas que rezasse um Creio no Final!

A notícia espalhou-se rápido: o Padre havia recebido a confissão do Mesa Branca e o absolvido! 

A Marmita adorava uma festa e não resistia em fazer saliência com algum caboclo de boa conversa! Nem todos solteiros, ela sabia, mas é que havia um fogo dentro dela! Naquela mesma tarde, foi falar com a Pipoca:

— Empresta a ficha do telefone, Pipoca.

— Tá doida que vou pegar a ficha do Mesa, mana?

— É rapidinho, eu já devolvo!

— Não posso, dá teus pulos! E aquele orelhão nem funciona, pequena!

— Para o que eu preciso, vai funcionar Te dou um litro de açaí se me emprestares um instante.

Isso balançou a Pipoca. Açaí é açaí, não se pode desprezar.

Com cuidado, na hora da sesta, quando o Mesa Branca estava dormindo na rede, a Pipoca pegou, com muito cuidado, a ficha que ele guardava em uma lata de café, junto com o terço e resto do dinheiro do seguro defeso da colônia de pescadores, que indeniza o tempo que os pescadores não podem pescar, para os peixes procriarem. 

A Marmita saiu saltitante com a ficha e voltou em menos de vinte minutos! Não disse uma palavra, devolveu a ficha e entregou o litro de açaí para a Pipoca. 

A missa das 19h foi estranha: igreja lotada, mas, à exceção de uns três ou quatro que respondiam, quase todos estavam calados… MUDOS! 

A despensa da casa da Pipoca estava lotada de açaí, camarão, farinha… 

… e, no final da missa, havia uma fila de mudos no confessionário!


Luís Augusto Menna Barreto

9 de novembro de 2025


*Vide a crônica "O Orelhão o Mesa Branca e o Padre"


sábado, 1 de novembro de 2025

O Orelhão, o Mesa Branca e o Padre



Ninguém mais achava estranho, que todos os dias, o Mesa Branca ia até o orelhão, pegava o telefone e ficava algum tempo falando. 

[Acho que a maioria dos amigos que lêem essas crônicas, sabem do que estou falando quando falo em “orelhão”, mas vai que alguém nascido depois de 2005, aventure-se neste blog. Seguinte: “orelhão" era como chamávamos os telefones públicos espalhados por aí. Era uma espécie de “concha”, mas que parecia uma “orelha" (daí o nome “orelhão), que protegia um aparelho de telefone grande, no tamanho de uma caixa de sapatos colocada na vertical, e que tinha uma haste móvel, ligada ao aparelho por fios revestidos normalmente de uma proteção de alumínio em espiral, que levávamos ao rosto e uma parte ficava colada na nossa orelha e outra ficava próxima à boca. Fora isso, para falarmos, precisávamos colocar umas fichas do tamanho de moedas, na parte de cima, que nos permitia falar por três minutos se a ligação fosse local, e por poucos segundos se a ligação foce interurbana! Ah, estranhaste também o “interurbana”?: Se a ligação fosse para outra cidade! Poderíamos, normalmente, colocar até seis fichas em uma ligação. No fim, as fichas não usadas, eram devolvidas por um pequeno compartimento em que colocávamos os dedos para resgatá-las. Assim que colocávamos o telefone no gancho, a ligação era encerrada e as fichas não utilizadas eram devolvidas. Cada ficha que caía, permitia que falássemos. Se a ficha não caía, era devolvida. E aí? Entendeste? “Caiu a ficha”?. Ah, e a maioria dos orelhões era de discar… mas acho que nem vou me atrever a tentar explicar isso.. que os mais novos perguntem e peçam fotos para o chat GPT!]

Enfim, o Mesa Branca ia todos os dias, assim que o comércio reabria, por volta das 16h, depois da sesta do meio dia, no único orelhão da cidade, que ficava na esquina da praça, bem em frente ao fórum. Ninguém estranhava o tanto que ele ia, em uma cidade que simplesmente as pessoas não faziam ligações. Os recados eram passados de boca em boca, levados pelos pilotos das rabetas e dos “pô-pô-pôs” que transitavam nos rios, furos e igarapés. 

E ninguém estranhava, também, o fato de que o orelhão, há muito tempo não funcionava. Simplesmente não havia sinal. Mesmo assim, o Mesa Branca ia todos os dias até o orelhão, colocava uma ficha que achou no trapiche, certamente perdida por algum passageiro visitante da ilha, e, desde então, diariamente, ia com sua ficha, colocava no orelhão, discava alguns números, e começava a falar. Depois, quando terminava, colocava o fone no gancho e sua ficha era devolvida. 

Já havia acontecido um episódio há alguns meses, antes mesmo de eu chegar na cidade, em que o Mesa Branca foi até o orelhão e, quando desligou, estava pálido. Mudo. E mudo ficou, desde então. 

O Mesa Branca, tinha uma companheira, a Pipoca! Doce! Deixa eu contar rapidinho a história das Pipocas. A Pipoca ganhou esse apelido na adolescência, porque não parava quieta, e parecia que andava sempre saltitante. Daí, virou Pipoca muito fácil. Mas por pura coincidência, há uma outra morena, perecidíssima com a Pipoca, e, muitas vezes, as pessoas as confundiam, chamando ambas de Pipoca. Dizem na cidade, que são gêmeas de mães diferentes, e todos acreditam que ambas são filhas do mesmo pai, mas isso não se sabe, porque as duas mães juram que as meninas são filhas do boto. Daí que o Mariposa, que um dia estava cobrando de uma Pipoca a conta que a outra Pipoca havia feito na sua loja, anotou no caderninho da conta, que uma era Pipoca Doce e a outra, Pipoca Salgada. Quando estão sozinhas, as pessoas chamam simplesmente Pipoca, mas quando se encontram, ou quando o assunto é sério e precisam ter certeza, chamam sempre acompanhada do sabor.

Pois aconteceu há tempos, que o Mesa Branca chegou do orelhão, olhando feio para a Pipoca (Doce), estava pálido, sentou sério, quieto, e quieto e sério ficou desde então. Não houve o que o fizesse falar. No açougue do Retalho, o Mesa Branca jogava quieto o bilhar. Na missa, não respondia mais com o coro. Em casa, nem para dar ralho nos moleques, se ouvia o Mesa Branca. Até o Goela, que jogava bola no mesmo time, não conseguiu fazer o Mesa Branca sorrir ou falar qualquer coisa. Ele se enclausurou em uma rotina de silêncio e seriedade. Por mais que a Pipoca perguntasse ou estimulasse o Mesa a falar, a reagir, nada! Ele ficava quieto, sério. Ninguém soube o que houve, ou o que o Mesa Branca teria ouvido na sua “ligação".

O Manobra, motorista da ambulância que passava os dias tomando uma cachacinha no açougue do Retalho, esperando por alguma emergência que necessitasse da ambulância, não se conformou e foi até o orelhão. Nada. Nem um sinal! O próprio Retalho, desconfiado de que o Manobra não tivesse escutado nada, porque andava sempre em estado de embriaguez, foi até o orelhão. Nada. Virou assunto da cidade, até que o Padre, conversando com S. Nonô e o Mariposa, chegou à conclusão de que era necessário colocar uma ficha para ver se tem sinal. Mas quem teria uma ficha? A única que conheciam era a do Mesa Branca, que sempre colocava no aparelho, mas a resgatava no final.

Daí, falaram com o Goela, e este veio falar comigo para trazer umas fichas telefônicas, já que todo final de semana eu ia para Belém. E assim foi. Voltei com 5 fichas telefônicas, que comprei na Telepará da esquina da Presidente Vargas, em frente à Praça da República, e entreguei para o Goela que, antes de entregar para o Padre, foi lá tentar, mas não deu em nada!

Então, o Goela entregou as fichas para o Padre e este foi decidido a desvendar o mistério! Estando praticamente toda a cidade sabendo do ocorrido, foi um alarde quando o Padre, depois da missa das 7h da manhã, tomou o rumo do orelhão. A procissão foi inevitável, e havia beatas rezando atrás do Padre, teve cantoria, e o Padre teve, mesmo, de abençoar toda aquela gente. Depois, antes de ir para baixo do orelhão, fez o sinal da cruz e disse: "Seja como Deus quer!”

Expectativa! O Padre tirou o fone do gancho, colou na orelha… as pessoas ficaram ombro a ombro ao redor do orelhão. Com muita cerimônia, o Padre pegou uma ficha no bolso da batina, ajeitou as ranhuras no local apropriado… demorou-se alguns segundos com metade da ficha para dentro do aparelho, a outra metade entre o polegar e o indicador… olhou para os fiéis… abriu o movimento de pinça dos dedos que seguravam a filha, e viu-a sumir para dentro do aparelho! 

Tensão! 

Silêncio...

Todos olhavam o Padre, sem saber o que aconteceria. Então, de repente, os olhos do Padre arregalaram! A expressão de dúvida e expectativa, foi rapidamente substituída por uma expressão dura. Em um acesso, o Padre pegou a parte do fone e bateu com raiva uma, duas, três vezes, no aparelho! Largou o fone que ficou pendurado, fora do gancho e começou a caminhar, em silêncio, em direção à Igreja. Todos foram atrás. 

A procissão de retorno à Igreja, foi maior ainda, porque havia a expectativa do que o Padre diria! O que teria ouvido? O que teria causado a fúria do Padre? O Padre entrou e postou-se no altar, como se fosse rezar a Missa. Todos entraram na Igreja, acomodaram-se nos bancos, alguns em pé… Igreja lotada. Burburinho e palpites de toda sorte, curiosidade, acima de tudo. O Padre então, olhou a assembléia lotada, ainda sério, e ordenou:

— Rezemos! 

Os poucos que não haviam acompanhado o Padre, eram o Retalho, que por nada andava a uma distância que perdesse o açougue de vista, o Manobra que, porre, não deu conta de caminhar até a Igreja, e sentou na beira, perto do Fórum, e o Goela… que decidiu ir até o orelhão! 

— Tá doido, Goela?! Não pega isso que tem visagem! — Era o Retalho gritando da frente do açougue. Até o Manobra fez o sinal da cruz e voltou tropeçando para o açougue quando viu o Goela ir pegar o fone no orelhão.

O Goela ficou com medo de pegar o fone pendurado e escutar, então, decidiu apenas colocar o fone no gancho, com cuidado, e pronto para sair correndo. Mas quando colocou o fone, e o gancho abaixou com o peso, ouviu o barulho da ficha do Padre sendo devolvida, caindo no compartimento de devolução das fichas não usadas.

Pensou uns instantes se deveria pegar a ficha ou não, e preferiu deixa-la lá mesmo para quem tivesse coragem de pegar a ficha do Padre.

Dizem que na Igreja, fora rezada uma novena inteira, mais um rosário, que são quatro vezes o terço! (Sim, tem coisas que não são explicadas pela matemática! Para a fé, são necessários quatro terços para um rosário completo*!) Os fiéis não entenderam exatamente porque estavam rezando, mas ninguém se atreveu a sair antes do final das orações, porque esperavam que o Padre, afinal, explicasse o que teria ouvido.

Não houve explicação alguma. Ao final, o Padre fechou-se em si mesmo, em silêncio. Os fiéis meio sem saber o que fazer, começaram a sair aos poucos. Mas todos eles tinham a mesma decisão, sem que nenhum precisasse perguntar ao outro: hoje, esperariam o Mesa Branca ir até o orelhão. Porque mesmo mudo, jamais ele deixara de ir. A hora da sesta nunca pareceu tão longa. As pessoas começaram a ocupar as calçadas onde havia sombra, o coreto no meio da praça, que era a casa do Mochila (mas ele adorava receber pessoas em sua casa), a sombra das árvores… 

Até mesmo as lojas, que tradicionalmente retomavam o comércio reabrindo as portas às 16h, aproveitaram o movimento, e abriram mais cedo. Então, pouco passando de 16h, lá veio o Mesa Branca, caminhando em passo decidido, dobrando na esquina da Delegacia, rumo à beira, onde passaria pelo meio da praça, até o orelhão.  Instintivamente, as pessoas afastaram-se um pouco, deixando o caminho livre para o Mesa Branca. Ouvia-se apenas o burburinho das pessoas, mas ninguém sequer atrevia-se a falar alto. Nem barulho de motor de pô-pô-pô ou rabeta, ouvia-se naquele momento.

O Mesa Branca chegou sem cerimônia no orelhão. As pessoas todas aproximaram-se e, agora, eram bem mais numerosas do que quando o Padre usou o aparelho pela manhã. Expectativa!

O Mesa Branca pegou sua ficha, colocou no compartimento, discou números… 

… e repetiu o Padre: em instantes, tirou o fone da orelha, e bateu uma, duas, três vezes com o fone no aparelho! Colocou-o no gancho e ouviu-se o barulho de sua ficha sendo devolvida. Resgatou-a, enfiando dois dedos no compartimento. 

Quando se virou, viu que todos esperavam por algo. Então, depois de vários meses de silêncio, ele encheu o peito, e ouviu-se novamente a sua voz declarando:

— Ocupado!


Luís Augusto Menna Barreto

Em 1º  de novembro de 2025


*Até 2002, o Rosário Completo era composto por três terços, com os mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos.  Daí, então, que rezar apenas uma volta no terço, representava, de fato, 1/3 do total do Rosário.

Em 2002, entretanto, o Papa São João Paulo II, por meio do documento Rosarium Virginis Mariae acrescentou  os Mistérios Luminosos, e, então, o Rosário completo, passou a ser a reza da somatória de quatro vezes o "terço".