O Massa Bruta, o Pigarro, o Testa e o Desvio
“Juremir Duarte Coimbra dos Santos!”
Sabe quando alguma coisa chama nossa atenção e nem percebemos direito?… aquele primeiro momento em que uma sobrancelha levanta, a testa enruga e o ouvido espicha esperando que a vida tenha um replay ou que alguém repita algo? Pois repetiu:
“Juremir Duarte Coimbra dos Santos!”
“Hein?”
Olhei para os lados. Acho que tive um segundo de pânico. Havia a mesa grande de audiências. Havia a servidora que se virou pra mim quando escapou o “hein” (acho que ela, quando olhou pra mim, também ficou com vontade de dizer “hein”). Havia a voz do meirinho chamando um nome do corredor. Acho até que eu estava um pouco inclinado na cadeira e sentia que minha orelha estava até fazendo força em direção à porta, esperando entender alguma coisa.
O meirinho chamou a outra parte, mas era um nome estranho seguido de “Transporte e Logística Ltda. Então, vou chamar de “Nome Estranho Transporte e Logística Ltda.!”
Acho que foi sem querer, mas virei a cabeça para um lado e outro, como que querendo entender tudo.
Entraram na sala cinco pessoas. Quatro delas usavam gravatas. Eram as únicas pessoas com gravatas na sala, porque eu confesso que não estava de gravata. Eu usava uma das camisas com gola polo que sempre usei nos últimos onze anos e meio. Olhei para meu braço e estava arrepiado. Descobri que eu estava com frio, porque o ar condicionado estava em uma temperatura muito mais baixa. Os homens de paletó e gravata estavam muito mais à vontade do que eu.
Os cinco que entraram na sala - quatro deles de gravata - estavam olhando pra mim.
Estava tudo muito estranho…
O dia anterior já havia sido estranho. Mas não houve audiência no dia anterior.
Eu lembro que depois de haver falado com um grande amigo que estava um andar abaixo, eu subi e fui até o meu gabinete. Ninguém falou nada comigo. Quando eu passava, os servidores apenas ficavam olhando pra mim. Quando abri a porta, havia um senhor de paletó na sala, perto da mesa, em pé, com cara de impaciente:
“Rapaz, vá chamar o juiz. Ande logo que estou com pressa!”
Eu nem havia tirado a mão do trinco da porta, ainda. Mas vá lá:
“Sim senhor”, respondi, e sem haver tirado a mão do trinco, fechei a porta.
O estagiário que estava perto e ouviu a conversa olhou-me como que esperando minha reação. Eu olhei para ele, e, sem nenhum som, levantei as mãos e encolhi os ombros na universal expressão que serve para milhares de perguntas e naquela hora o “Google Tradutor” interpretaria como: “quem é esse senhor?”
O estagiário disse que era um advogado bem conhecido (não por mim) e que tinha muitos processos ajuizados.
“Ah…!”
Bom, fiz o que sempre foi minha rotina desde que pisei pela primeira vez em um fórum: cumprimentei a todos, passando em todos os setores, desde a senhora que serve o café e limpa a sala, até o diretor de secretaria. Acho que levei uns dez ou quinze minutos e já me sentia desconfortável, porque, como eu voltei da porta, estava ainda com a mochila no ombro e começava a incomodar porque eu sempre a usei apenas em um dos ombros. Mania da adolescência em que carregar assim é mais “descolado”.
Quando voltei, estava lá, com cara de impaciente, o mesmo senhor, com paletó impecavelmente vestido, e cara de poucos amigos:
“Vá, rapaz, chame logo o juiz que não tenho o dia todo!”
Caminhei lentamente em direção à mesa, larguei minha mochila, sorri diante do semblante agora desconfiado do advogado e comecei a dar a volta na mesa.
Enquanto caminhava, notei que por um instante ele pareceu ficar surpreso… abri uma gaveta, ainda em pé, como se eu procurasse alguma coisa e notei que da surpresa ele passou a uma pequena expressão de assustado. Abriu a boca para falar algo, mas apenas pegou um pouco de ar e engoliu sem mastigar!
Sentei devagar e estendi a mão para que ele fizesse o mesmo. E ele foi sentando agora com a expressão de “(palavrão) será possível (palavrão) espero que não (palavrão ENORME) É ELE MESMO!!!"
“Pois não?, disseram-me que o senhor gostaria de falar comigo!” E sorri.
…
Pois é, eu disse que havia sido estranho!
Estavam ali, os cinco olhando pra mim. A mão estendida do meirinho com o processo, esperando que eu o pegasse. Acho que pisquei algumas vezes até conseguir concentrar-me e pegar o processo… Acho que eu estava distraído pensando no maravilhoso por do sol do Marajó! Pensando na caminhada lenta de casa até o fórum, desviando pelo caminho mais longo apenas para caminhar ao longo do rio… … pensando no navio atravessando a baía e nas viagens de lancha.
Estava pensando nas “gentes" do Marajó…!
“Doutor?” Mão estendida. Processo na ponta da mão. Advogados olhando. Cinco pessoas na mesa. Quatro de gravatas.
Pisquei algumas vezes. Queria ver se piscando, tudo voltava ao normal.
Não voltou! Todos olhando pra mim. Meirinho em pé ao meu lado. Processo estendido.
Peguei devagar o processo.
Li os nomes: “Juremir Duarte Coimbra dos Santos x “Nome Estranho Transporte e Logística Ltda.”.
Não eram apelidos. Eram nomes.
Meu coração ficou pequeno.
Onde estaria o Goela…? Como estaria o bar do Seu Nonô? Será que o Manobra, motorista da ambulância, já estaria no açougue do Retalho tomando uma?
Quando fechei os olhos um instante, ouvi barulho de carros, não do rio… No caminho até o fórum, as coisas passavam depressa por mim, pela janela… eu estava parado e os prévios moviam-se rápido, apressados, passando por mim. Tudo parecia apressado. A vida estava em outro ritmo, e parecia que eu me movia em câmera lenta.
As cinco pessoas que olhavam pra mim (quatro de gravata) pareciam ansiosas… uma ansiedade que não havia no Marajó.
Eu me recompus.
Era o juiz. Aliás, não era mais “o” Juiz… era “um" juiz entre os dezessete daquele fórum.
Realizei a audiência e tive de olhar várias vezes no Código de Processo Civil para certificar-me do procedimento, porque notei que ali, aquelas pessoas, especialmente as de gravata, não queriam resolver o problema… não do jeito que eu aprendi nos onze anos e meio passados! Elas queriam leis. Dogmas. Ritos. Não era como no Marajó, em que o mais importante era aquela gente tão mais simples compreender que estávamos ali para resolver um problema.
Daí, que eu não estava mais acostumado com o “juridiquês”.
Enquanto eles falavam sem parar ao mesmo tempo, sem respeitar o momento um do outro (e, naquele primeiro dia, eu deixei que falassem o quanto queriam e fiquei olhando o quão insensatos podemos ser), eu fiquei olhando… simplesmente olhando:
O advogado gordo da ponta da mesa lembrava-me o Tonelada, policial que prendia sem mandado, mas que resolvia tantos problemas, esperando passar os porres dos caras que ele prendia durante a noite e soltava pela manhã, evitando tantos crimes de violência doméstica. Acho que passaria a chamar ele de “Massa Bruta” sem nenhum problema! No meio dos dois advogados (o “Massa Bruta” e o “Pigarro" - eu chamaria o advogado magro da outra ponta de “Pigarro" porque para tentar me chamar a atenção ele fingiu pigarrear por duas vezes), estava o cliente, representante da empresa, também de gravata. Esse, eu chamaria de “Testa”. Sabe aquelas pessoas calvas, em que o cabelo que resta começa lá em cima, quase no meio da cabeça? Daí, que parece que a testa do caboclo fica enorme, porque a gente tem a tendência de achar que a testa acaba onde começam os cabelos. No outro lado da mesa, estava o Juremir Duarte Coimbra dos Santos! Acho que eu o chamaria de “Pastor”. Era o único sem gravata dos cinco que entraram, mas estava com uma camisa preta abotoada até o colarinho. Imaginei uma Bíblia embaixo do seu braço. Parecia com os pastores do Marajó, quase sempre com a camisa abotoada até o colarinho e a Bíblia embaixo do braço até para ir no açougue do Retalho, como que pra mostrar que eram “da igreja”. Por último o advogado do “Pastor”. Esse seria certamente o “Desvio”. O homem tinha um leve estrabismo, mas “ao contrário”. Aquele olhar bem “aberto”. Um olho parece olhar pra gente e o outro parece “desviar" o olhar e a gente nunca sabe se está sendo encarado!
Enquanto eu pensei tudo isso, o Massa Bruta, o Pigarro, o Pastor e o Desvio continuavam a falar ao mesmo tempo. O único quieto era o Testa, que olhava para todos bem assustado.
Então, de repente, quando eu me dei conta que havia apelidado todos, veio um sorriso involuntário: eu descobri algo que de alguma forma trouxe-me conforto: eu havia, sim, saído do Marajó… mas o Marajó havia ficado em mim!
Por Luís Augusto Menna Barreto
Descreveu tudo tão bem que me vi assistindo pessoalmente. Como no Marajó o estranho é não ter apelidos, chamar pelo nome próprio assusta mesmo. Acho que entendi as mudanças grandes /graves ocorridas na sua vida. Saiu do Marajó,mas o Marajó não saiu de você. Pra onde estiver, tudo aconteça da melhor forma possível poeta.
ResponderExcluirEspero eu, que a ilha jamais saia de mim........
Excluir... e espero, eu, sempre poder contar as milhares de maravilhosas histórias que ainda não contei... espero conservar os amigos... espero que eu não vire uma ilha...!
Saudades de vc e das suas crônicas. Amigo novos dias virão, novas histórias e as que faltam ser contadas, nos conte por favor. O tempo não volta, mas os momentos podem se repetir. Seja bem vindo, sempre!
ResponderExcluirAh.... tão obrigado por tua recepção tua gentileza....
Excluir... ainda estou-me adaptando... sinto falta da minha rua que se mexe... dos ventos, das gentes, dos cheiros....
... Novos ares.... e assim é a vida...! Haverei de buscar os sorrisos do asfalto e dos prédios...!
Amigo diante de tantos desencontros, vc se encontra e se encanta no seu encontro com o seu canto de contar contos do seu Marajó. Lugar que vc escolheu pra chamar de seu, agora ao escutar o canto do seu encanto compreendo o porque deste encanto.
ResponderExcluirRealmente... tudo é encantador pela ilha!!!!
ExcluirAgora, novos ares virão!!! E novos sorrisos...!!!!!
Feliz 2017, amigão!
Bom estar aqui de novo!!!!
ResponderExcluirBom ler tuas crônicas...
Sempre que venho aqui no blog é um aprendizado de vida!!!!
Bom, é ter vocês pra dividir essas aventuras...! Bom é receber essa gentileza...!
ExcluirMil obrigados!!!
É muito bom mesmo, estar aqui novamente com todos vocês. Senti muita falta das nossas partilhas.
ResponderExcluirEstava sedenta dos teus textos, poeta. Já comecei a matar a saudade com a crônica de hoje. Muito boa!!! Deu pra perceber que aí na sua nova cidade, a banda toca mais acelerada. Mas, faço votos, que todas as mudanças que aconteceram sejam todas para um bem maior na sua vida.
E, seja sempre bem vindo!!!
Olá... obrigado por voltares..
ExcluirSaudade estava eu..!!!
Sim, tudo diferente, aqui... concreto, asfalto, buzinas... nomes próprios...!
Diferente... haverá, agora, o necessário trabalho de adaptação...!
... recomeço...!
Alguns aspectos impressionaram-me nesta tua crônica, os quais tenho quase certeza de que tu vais dizer que não tiveste a intenção de assim fazer parecer. Mesmo desse jeito, ouso tocar de leve em dois deles.
ResponderExcluirUm é a facilidade com que tu-narrador-personagem transitaste no tempo: narraste o hoje; foste ao ontem; e retornaste ao hoje com leveza e sem atrapalhação à compreensão do leitor.
Leva-se ainda em conta que, nesse intermeio, a SAUDADE sobrevoou por sobre as águas dos rios e do Arquipélago do Marajó, num tempo indeterminado, mas aprisionado num recorte de onze anos e meio.
Outro aspecto é a crítica que está atrás do dito destas tuas palavras:
“(...)notei que ali, aquelas pessoas, especialmente as de gravata, não queriam resolver o problema… não do jeito que eu aprendi nos onze anos e meio passados! Elas queriam leis. Dogmas. Ritos. Não era como no Marajó, em que o mais importante era aquela gente tão mais simples compreender que estávamos ali para resolver um problema. (...)”
Leio neste trecho, meu cronista predileto, além da crítica que fazes, uma concepção que tens do fazer jurídico. Mas, também, leio nitidamente o lençol de sensibilidade, no qual as tuas crônicas se deitam e se cobrem.
Parabéns! Tu és muito bom cronista, sim. Porém disso tu já sabes. Só falta publicar.
Hoje, escritora, é ainda mais difícil responder-te...
ExcluirSentei para escrever a crônica e fi-lo em um fôlego só. Às vezes, efetivamente percebo que me desligo do tempo em que estou narrando e volto... daí, como quem pisca e acorda do sonho voltando ao presente, eu o faço na crônica... mas, de fato, é sem a compreensão de haver nisso técnica ou não...
Como Chicó: "como é não sei, só sei que é assim"...
Quanto à saudade... ah.... inevitável... (e que bom que é assim... partida com choros, com lágrimas, com abraços e promessas, lembranças e estórias...
... ainda não estou preparado para falar muito nisso...
Espero defender-me da dor, do vazio da ilha em mim, com as maravilhosas histórias (tantas!) ainda por contar...
Quanto à publicação... ainda estou colecionando crônicas... são poucas, ainda...! Mas, sim, decidi que quero fazê-lo...!
Obrigado... muito obrigado, de coração!
Levarás Marajoó em ti, e deixarás um pouco de ti lá. E isso que "juntamos" em nossas vidas...
ResponderExcluirLevar um pouco de cada pessoa que convivemos e amamos.
Caro poeta, sejas feliz na tua nova jornada/escolha.
Penso que a felicidade também é questão de escolha... de concentrar-nos em ser felizes...!
ExcluirQue venham os novos ares e que saibamos olhar sempre desarmados, abertos às pequenas coisas boas que hão de vir...!
Amigo, as lembranças - ruins devemos refletir sobre elas tirar lições e continuar a caminhada, agora com mais experiências e se possível não ficar remoendo-as.As boas-como estas que vc traz no coração ( sem procurar discussão - pra mim é o cérebro o derradeiro depósitos de nossas lembranças) portanto as lembranças boas que vc tão bem roteirista em forma de treiler são fantásticas e não devem mesmo serem esquecidas. As lembranças são eternas e verdadeiras e transcendem a própria vida. Então amigão não as esqueça jamaise, mantenha elas viva como eterno vínculo ao nosso Marajó.
ResponderExcluirExatamente, amigão...!!!!!
ExcluirComo eu disse: eu posso até ter saído do Marajó... mas o Marajó não haverá de sair de mim...!
Só quem vive ou. Obrigado por lá, participou de sua rotina, conviveu com suas gentes, pra sentir isso...! Deus dei-me uma oportunidade que a poucos é dada...! Fez-me experimentar o maravilhoso cotidiano da ilha...! Isso, amigão, não haverá o que tire do meu coração...!!!!
Parabéns!!! Admiro muito a forma como olhas, percebes e repassas o que crias. Outra coisa que me chama a atenção também é a afeição que demonstras às experiências vividas. Parabéns, refletes humildade e sabedoria ao mesmo tempo, quando captas as coisas boas e positivas de uma cultura diferente da tua. Mais uma vez parabéns, enxergas e escreves muito 👏👏👏👏👏👏😙
ResponderExcluirMais uma vez obrigado, DIGO EU!
ExcluirQuanto às experiências que passo, procuro, Margarida, sempre estar aberto e tirar delas o que há de bom...
Acho que a vida tem passado rápido demais por mim... não quero ficar com as coisas ruins e experiências que me tragam angústia... se algo não tá tão bom, tento (teeeeento!!!) mentalizar que vai passar e ver se no meio de tudo, há coisas boas para resgatar disso.
A maioria das aventuras marajoaras que passei e retrato nas crônicas, seriam situações constrangedoras, ou que me deixaram sem ação no momento... mas depois, é isso: restam coisas boas e divertidas...!!!
Tirar o bom de momentos ruins é uma virtude de poucos e ajuda manter a juventude.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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ResponderExcluirBem-vindo a sua nova realidade amigo! Só posso desejar que, apesar de brutalmente diferente, ela possa ser semelhantemente inspiradora para suas deliciosas histórias. Abraço fraterno!
ResponderExcluirDr, sentiremos muito sua falta. Espero que nunca esqueça de nós, povo marajoara. Que o Marajó permaneça nas suas crônicas, contos e poemas, e em especial, no seu coração!!!! Volte sempre!!!
ResponderExcluirNunca, guria... nunca vou esquecer...
ExcluirTá fazendo um ano que saí do Marajó... mas descobri, com um sorriso, que o Marajó não saiu de mim!
As mudanças sempre acontecem, e deixam-nos sim com cicatrizes e tatuagens, cicatrizes pelos momentos difíceis, tatuagens dos bons momentos e lembranças que guardamos com carinho dentro de nós. sim, o Marajó continuará vivo dentro de você, inteiro e pleno, com as cicatrizes dos momentos difíceis e também com as tatuagens dos momentos alegres que vivestes lá!
ResponderExcluir... meu corpo é inteiro tatuado da alegria do Marajó!!!!
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