quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

O Cedecê, o Desmorrido e a Black Friday

 


Eu já contei algumas histórias sobre a “Black Friday”, especialmente histórias que aconteceram no Marajó. Porque tu sabes que tem coisas que só é possível acreditar, porque acontecem no Marajó!

Pois essa foi outra da “Black Friday”… no Marajó:

Eu lembro que em 2019, quando houve a inauguração da loja Americanas em Marajó City, a “Black Friday” foi um acontecimento. E eu cheguei a contar duas histórias sobre aqueles eventos maravilhosos.

Em 2020, ainda que houvesse a pandemia como uma nova realidade imposta, houve, também um ou outro caso, mas nem cheguei a contar… ainda! Mas o que aconteceu antes, naqueles meus maravilhosos anos de Marajó, é algo difícil de acreditar. Bem, mas nem tudo que conto eu espero que acreditem, porque eu mesmo lendo, penso que se eu não tivesse vivido tudo isso, eu duvidaria! Só posso afirmar que são histórias reais, e que eu as vivenciei. Se tu és Marajoara, certamente não duvidas. Se não és Marajoara, eu rememoro Shakespeare: “Há mais mistérios entre o Céu e a Terra, do que tua vã filosofia possa imaginar”. Então, um conselho: se não vais acreditar, apenas não duvides, antes de conheceres o Marajó e suas gentes!

Pois, como era de se esperar, era sexta-feira! “A” sexta-feira! A aglomeração na frente das lojas locais era inenarrável! Mal o Tonelada dispersava uma briga aqui, surgia uma outra escaramuça ali, todas em frente às lojas que abrem as portas à meia noite de quinta-feira para sexta-feira. Daí, que normalmente, por volta do meio dia, as confusões vão terminando e a cidade começa a recuperar um ritmo lento. Isso tudo, sem contar o sol, que faz com que a cidade fique com as ruas desertas a partir do meio dia. Daí, que a partir de 12 horas, é raro chegar ao fórum qualquer caso, ou mesmo, qualquer pessoa presa em flagrante delito, porque até os malandros respeitam o horário da sesta.

Mas naquela sexta-feira de “Black Friday”, o Fechadura chegou apresentando o Cedecê!

Eu confesso que estranhei, porque o Fechadura é o carcereiro e “faz tudo” na delegacia, mas raramente apresenta os presos. Normalmente chamam o Tonelada, policial militar, porque com ele, ninguém “se rebarba”, como dizem por aqui!

— Fala Fechadura! Tu, trazendo preso? 

— Esse fui eu que dei voz de prisão, doutor!

— E agora tu também sai atrás de preso, Fechadura?

— Não fui atrás, doutor! Ele que veio na delegacia!

— Hein?

— Foi lá fazer reclamação, doutor! Disse que foi enganado na “Bléqui Fráidi”. 

— E tu prendeste o caboclo por ir reclamar?

— Tava com droga, doutor! Fosse o Tonelada, já ia botar no 33. Eu acho que é 28, daí trouxe para o senhor, logo!*

Eu não estava entendendo muito bem, então, decidi perguntar logo para o Cedecê!

— Caramba, Cedecê, e tu tá doido? Entrar na delegacia com droga? Logo na delegacia? E como o Fechadura descobriu que tu estavas com droga? Ele farejou?

— Eu que mostrei, doutor!

— Hein?

O caso foi o seguinte: o Cedecê sempre arruma confusão no comércio dizendo que o comerciante está infringindo o “CDC" (Código de Defesa do Consumidor). Acontece, que o Cedecê é usuário de drogas, e “diz que”** que até a droga entrou em promoção na “Black Friday”. O problema é que na boca da Simulada, ela até baixou o preço, mas daí, para compensar, aumentou na mistura. Então o Cedecê fumou, mas não deu barato. Ficou indignado! Foi pedir a intervenção da autoridade, para dar jeito e a Simulada diminuir a mistura!

Isso já era bem “diferente" para uma sexta-feira, mesmo de Black Friday! Mas o dia ainda reservaria mais uma situação peculiar!

Perto de fechar as portas do Forum, por volta de 14h, o Goela entra no gabinete, com aquela cara de quem sabe que que vou ficar estressado:

— Doutor, parece que o Barganha tá precisando de ajuda!

— Qual é, Goela? O Barganha já tem mais de 20 anos de fórum, que ajuda que ele pode precisar…?

Mal falei isso e ouvi a D. Boneca, que cuida da limpeza do Fórum, passar apressada pelo corredor em direção à porta da rua, e logo depois, a Tutela saindo correndo:

— Credo em cruz, ave Maria, sai pra lá, visagem! — Saíram gritando!

— O que é isso, Goela?

— Falei, doutor! É que o Ralhado desmorreu.

— Hein?

— Doutor, o Ralhado é o Raimundo Anunciação dos Prazeres.

Tentei puxar pela memória, afinal não eram tantos processos assim. Repeti o nome, de forma “espichada”, como a gente faz quando quer tentar lembrar:

— Raimuuuuuuuuundo…

Lembrei:

— Raimundo Anunciação dos Prazeres? Mas ele morreu, o inventário tá no fim! Não tem filhos, vai ficar tudo pra Arraia! — (“Arraia”, é a Socorro dos Anjos de Oliveira, viúva… eu acho!)

— Pois se morreu, é a alma penada que tá lá com o Barganha, doutor!

Mandei chamar. Confesso que quando o Goela virou as costas, até fiz o Sinal da Cruz. E quando o Caboclo entrou, senti um arrepio na espinha, mas tentei manter a pose!

— Tu que és o Raimundo Anunciação dos Prazeres?

— Sou eu, sim senhor!

— Meu Deus! Tem um inventário tramitando há mais de 5 anos! Que bom que demorou e não mandei expedir os formais de partida ainda! Ia ser muito mais complicado para o senhor recuperar os bens!

— Doutor… sabe o que é… eu não queria recuperar nada não. Na verdade, doutor, nem quero desmorrer!

— Hein?

— Sabe, doutor, a Arraia era muito braba. No começo era bom, mas logo virou só briga! Não podia me ver numa rede, que logo arrumava uma terra pra roçar, um matapi pra por no rio, um açaizal pra me fazer tirar palmito, doutor! A vida era muito sofrida! Daí que conheci a Escondida lá pra bandas da água grande da baía, e fui logo me engraçando com ela, doutor! Deixei tudo pra trás sem fazer caso, e a Arraia encontrou o casco que eu tava e logo achou que me afoguei por estar bebido! Eu vim duas ou três vezes na cidade e fiquei sabendo que eu tava morto! 

— Mas agora tu estás vivo, Ralhado!

— Carece não, doutor! Nunca vivi tão bem, quanto depois de ter morrido! 

— Mas tu não vieste aqui pra desmorrer? Vou ter que anular o inventário e te desmorrer, Ralhado!

— Faça isso, não, doutor! Pior que uma ex-mulher, é uma ex-viúva! E eu só vim aqui, por causa da “bléqui-fráidi”!

— Hein?

— Doutor, como to morrido, meu crediário não passa! Queria comprar um fogão pra Escondida, aproveitando a “bléqui fráidi”. Daí queria ver se o senhor podia me dar um papel pra ressuscitar só um instante, e autorizar fazer um crediário! É o tempo de fazer a compra e eu “desvivo” de novo!

Pois é… tem coisas que só no Marajó.


*Referência aos artigos 33 e 28 da Lei 11.343/2006. O primeiro (artigo 33) trata do tráfico propriamente dito, com previsão de pena bem maior que o segundo (artigo 28), que trata de consumo.


**“Diz que”, é uma expressão corrente no Marajó, que se pronuncia quase como se fosse apenas uma palavra com o som “dísqui”, quando se quer referir a comentários dos quais não se sabe a origem! Por isso que na oração, no texto, a expressão “diz que” é seguida de mais um “que”. Equivale a “diz-se”, como na frase:  “Diz-se, por aí, que brasileiros são alegres” = “Dísqui que brasileiros são alegres”.


Luís Augusto Menna Barreto

27.11.2021 

30 comentários:

  1. Muito bom poder ler teus contos, obrigado.

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    1. Olá, C. Batisti!!!!
      Que maravilha ve-lo por aqui!!! Espero que tenhas achado divertida a história!!! Há coisas, que só em Marajo!!!!!

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  2. Gente do céu 😲 que doidera viu, passa um filme na mente com tudo isso, o morto vivo querendo crediário? Até eu me benzeria em vê-lo hahaha só vc mesmo em ? Maravilhosa e divertida crônica. Eu rir outros como dizem aqui!! 🤭🤭👏👏 Marajó vc e suas histórias que nunca ouvir falar em outro lugar!! Morto desmorrer.😅

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    1. Liiiiiiiiiuu!!!!
      Sempre bem vinda e obrigado!!!!!!!
      E não é, que o morto queria crediário?! Vai entender!!!!! Coisas de Marajó!!!!!!!!

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    2. Venho sim,uma maravilha de leitura com esse povo tão singular!! Através de vc a gente ler e viaja junto pra lá mesmo de longe!!

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  3. Muito legal mesmo! Eu acredito sinceramente, pois palavras, apelidos e frases engraçadas são características de cidades interiorana.
    Minha cidade Caraúbas, no oeste potiguar tem muita coisa parecida. E como meu pai era escrivão do 2º cartório lá, contava muita história vivida ali.
    Que bom poder continuar lendo seus contos Mestre.
    Um Bom Dia!

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    1. Bom dia, Salete!!!!! Entre e fique à vontade!!!!
      Que ótimo ver-te aqui!!!!!
      O interior é tão peculiar! Há tanto Brasil que o Brasil não conhece… quem fere contar histórias de todas as suas gentes…! Eu, conto o que vivi no Marajo!!!!

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  4. É impossível não se emocionar durante a leitura de suas crônicas, contando "causos" do Marajó, Poeta!
    O que mais gosto de ver é esse relato da compreensão desse povo marajoara, numa mistura, às vezes, de inocência e/ou malandragem.
    Eu mesma nunca vou saber se cada personagem age dessa ou daquela maneira por ignorância ou esperteza.
    É difícil decidir...
    E acho que esse é o seu ponto forte - nos trazer a dúvida para nossas cabeças.


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    1. Ah!, Maria, como disse a tua xará, Mãe de todos nós, em o Auto da Compadecida: “a esperteza é a arma do pobre”… eu também nunca soube e ainda não sei… O que aprendi foi a amar essas pessoas, essa simplicidade, essa vida…! Se for por ignorância, haverão de ser guisados por Deus… se for esperteza, haverão de ser perdoados por Deus…! A nós, cabeça alegria de poder desfrutar dessas aventuras que só acontecem no Marajó!!!!

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    2. É verdade, Poeta.
      E assim, lendo suas crônicas, vamos refletindo um pouco mais sobre a vida.

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  5. Opa, demorei,(problema com a Internet) mas cheguei para me divertir com as situações dos marajoaras. Nesse lugar não existe tédio né? Toda hora é um susto novo, uma surpresa quase que inacreditável kkkkkkkkkk
    Essa do desmorrido querer desmorrer só por tempinho rápido pra fazer um crediário foi ótimo. Amei a crônica, espero outras... outras e mais outras. Grande abraço poeta.

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    1. Nice…. Sempre tão bom ver-te aqui!!! Na verdade, essa do Desmorrido teve um ou outro desdobramento que acho que vou ter que contar… quem sabe na próxima quarta-feira….?!!!!

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  6. Realmente tudo acontece no Marajó. Vive por lá uma temporada e sei que essas histórias são bem verídicas, com um toque de humor e encadeamento, são contadas de uma forma singular pelo Menna...👏🏼👏🏼👏🏼

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    1. Ah!, Roberto…. Que tempos maravilhosos, em que jogávamos Ping-pong no salão do Júri, porque ninguém tentava matar ninguém, e não dava jeito de inaugurar aquele salão!!!!!! Só quem viveu ou vive por lá, pra saber o quão peculiar é aquela realidade!!!!

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  7. Kkkkk
    Que saudades desses causos de Marajó city!!!

    Eu ainda tô rindo,Menna!!!

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    1. Michele… ah! Rememorar o Marajó é um jeito de sentir-me por lá mais um pouquinho…! Como é bom!!!!!!!

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  8. Não querer "desmorrer" ,foi a melhor do dia!!😁😁😁😁😁😁😁

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    1. Era só uma ressucitadinha rápida pra fazer o crediário e já desvivia novamente…🤣😂🤣

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  9. Adorei! O morto que queria desmorrer pra pegar um crediário pra companheira e o usuário de drogas queria reclamar na delegacia sobre a mistura que estava de baixa qualidade kkkkk. Como explicar as coisas que acontecem no marajo? Os costumes desse interior são diferentes do resto do Brasil e aplicar a lei pode ser mais difícil do que parece. Ora, o desmorrido queria um papel para ressuscitar kkkk. Surpreendente e engraçado. Conte-nos mais histórias de marajó.

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    1. … e o mais incrível, Suellen, é que mesmo tendo saído do Marajó, o Marajó vem até mim com história novas… … às vezes, o Marajó é descoberto por corredores de prédios metropolitanos… A realidade é mesmo FANTÁSTICA, né?!

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    1. Sííííííílvia!!! Que saudade de ver-te aqui!!!! Entra! Fica mais um pouco! Bora conversar com o tempo de quem não tem relógio…!!!!

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    2. Dr. Menna... Que saudade de conversar contigo! Passando aqui para te desejar Feliz Natal! Que venha um Ano Novo com mais realizações, se Deus nos permitir. Boas Festas!

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  11. Acreditar...acreditar...confesso, não sei se consigo ainda rs, mas gostei muito e muito dessas histórias e já estou compartilhando com amigos...Ah...amei os nomes dos personagens!

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    1. É porque ainda não foste iniciada na vivência das gentes Marajoaras!!!! Bora logo programar uma visita com fins de pesquisa linguística!!!!
      Nossa amiga em comum, Ana Isabel, esteve lá, visitou as ilhas! Esteve em Breves e Bagre, deslizou n’esse “rio é minha rua / minha e tua, mururé…”!!!! Ela conversou com as gentes que sequer lembravam o nome, mas se sabiam pelos apelidos, colados à personalidade, como levam o amor pelo Marajó tatuado na alma!
      Vem, e faço questão de levar-te ao açougue do Retalho, ao Bar do S. Nonô, na loja do Mariposa! Vais encontrar o Manobra (motorista da ambulância), tomando uma com o Relege, enquanto a Maria Sem Sossego grita “Justiiiiiiiiiiça” na frente do Fórum; Com sorte, veremos o Seu Iutá, (é um “i” maiúsculo no começo do nome) com sua esposa, D. Jorja, e as duas filhas Carolinas… vem… descobre esse mundo tão distante, tão peculiar… e tão Brasil! Vem, professora!!!

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  12. Adoro tuas crônicas!
    Obrigado pelos momentos agradáveis de leitura!!!

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  13. Estou encantada!!! Imagino como Marajó deve sentir um orguuuulho, em ter esse gaúcho que não perde seu sotaque gostoso e intenso, que da às suas crônicas autenticidade e valor...

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    1. Meu comentário saiu como anônimo. Desculpa amigo Luís. Eu não sei publicar. Parabéns!!!

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